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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Sunday, January 31, 2016

"Café com bichos" de Ricardo Bordalo (edição de autor)

Ilustrações de Rosário Pinheiro e Liliana Rodrigues




Ilustrado por Rosário Pinheiro e Liliana Rodrigues


Um pequeno livro em cartão, um arrojado design de linhas geométricas, de inspiração algo maçónica, que aposta no jogo de contrastes e simetrias. No aspecto literário, temos um ousado desfile alegórico, carnavalesco,de personagens arquetípicas, cuja máscara/persona animal enfatiza o lado burlesco, tragicómico, da espécie humana Trata-se de uma galeria de seres metamorfoseados, à semelhança da personagem de Franz Kafka que se transforma em insecto no final da trama, ou das fábulas de Esopo, as personagens deste livro que irrompem diante dos nossos olhos como o resultados da fusão de determinadas características psicológicas do ser humano (regra geral, de valoração negativa) as quais se manifestam, discursiva e visualmente através do discurso do narrador que lhes atribuí o aspecto físico de um animal, um bicho. Desta forma Ricardo Bordalo, pela voz do seu narrador transmite o resultado do ponto de observação, o canto da mesa de um café, dos clientes que por lá vão passando. Este conjunto é formado pelos mais diversos tipos psicológicos, caricaturados através de um olhar indiscreto que vai descodificando gestos, expressões e olhares com especial virtuosismo na identificação do grotesco. As personagens são retratradas discursivamente com características de animais, fundindo-se o aspecto físico e psicológico das personagens humanas com os seres a partir dos quais o narrador vai identificando analogias. A atitude deste narrador é sempre crítica, os seres observados nunca saem especialmente valorizados após o escrutínio do olhar impiedoso do observador, mesmo aqueles que são alvo de um tratamento um pouco mais benevolente, resultando em verdadeiros exercícios de escárnio e mal-dizer. Este posicionamento é, desde logo, marcado pelo distanciamento físico do narrador face às personagens, colocando-se o observador a um canto, afastado, não se misturando com os clientes para melhor os observar. Mesmo quando a distância física é diminuída isso só acontece por iniciativa da personagem que opta por se aproximar e sentar-se junto dele.

A intenção desta obra é a de lançar um olhar critico aos hábitos sociais de uma população em que um dos principais hábitos culturais é precisamente a de utilizar o café para se socializar, exercendo este lugar uma função fáctica de aproximação das pessoas, actuado como facilitador de comunicação, uma vez que a maioria das pessoas “vai ao café” muito mais para estabelecer contacto outras do que para saborear a bebida com mais ou menos açúcar.

Tomemos como exemplo a analogia estabelecida pelo mesmo narrador que vê numa das figuras que ali se sentam, um maçom, de aspecto físico e atitudes se lhe apresentam em tudo similares às de um porco-espinho.:

«...sentei-me na mesa do café onde se fuma (…) e nem dei conta do porco-espinho que estava na mesa ao lado, a esforçar-se por bebericar o café pingado (…), és um porco-espinho maçom (…) e, pelo sotaque, deves ser italiano...é verdade, diz o bicho... sou italiano, e quanto ao resto, estou aqui para te fazer um convite a ingressar na nova loja. Convidei a animália italiana para se sentar na minha mesa...e a partir daqui não digo mais nada...seus profanos!!»

Há aqui uma evidente relação hierárquica vertical, onde o narrador se coloca acima da personagem, pois só convida para a sua mesa depois de este lhe propor algo que lhe interessa e mesmo assim tratando-o com um certo desprezo condescendente ao apelidá-lo de “animália”. Por outro lado, é sempre o ponto de vista deste narrador de primeira pessoa que prevalece.

Noutra fábula deste café de frequentadores tão peculiares, o protagonista é um bezerro, não de ouro, nem com pose de ídolo, mas com aspecto de proletário, perfeitamente plebeu, a representar a figura de jornalista mal-pago e, contudo, livre pensador, o qual vence o confronto com um arrogante pato-bravo. Paga, no entanto, um preço: o de viver sem raízes, sem vínculo profissional que lhe proporcione o conforto ou a estabilidade que lhe permita a partir de então, fixar-se em algum lugar. Expulso do paraíso, portanto. Por outro lado, sobressai também neste conjunto de textos, o oportunismo da lagartixa, “sempre apressada e frenética”, obcecada pelo “hábito de aproveitar sempre as oportunidades”, característica que nela está, já, perfeitamente automatizada. E a esta figura, juntamente com a do pato-bravo que o sarcasmo vertido pelo narrador mais se faz sentir, atingindo o ponto culminante na comparação que estabelece entre o oportunismo da lagartixa com o dos crocodilos: “quase lhe disse que eu também...[ que também gosta de aproveitar as oportunidades], mas depois lembrei-me que os primos dele no Nilo fazem o mesmo.

O cliente seguinte é um ouriço-caixeiro o qual, ao contrário do obscuro porco-espinho, é um filósofo da economia e da política, que surge a dissertar sobre finanças, numa perspectiva existencialista-dialéctico-marxista. Ou seja, de ouriço e de caixeiro propriamente dito só tem o focinho pontiagudo [nariz] e a pasta [das finanças].

No que respeita à lesma negra da fábula seguinte, há uma variante: é esta criatura quem enceta conversa com o narrador. Este vê-a tão arrogante quanto o porco-espinho, pois refere-se aos outros empregando um discurso de valoração marcadamente depreciativa: à empregada do café trata-a como “gaja” e ao narrador por “estafermo”, o qual não deixa o caso por menos ao identificar aquele ser com um nojento animal rastejante e viscoso. A lesma negra é uma alma revoltada, imersa no fel que vomita acriticamente (ao contrário do narrador) contra o mundo e em permanente luta com o mesmo. E que, por essa razão, por onde que que passe, deixa um rasto pegajoso.

Depois há, também, uma senhora coruja sempre a dizer mal dos morcegos (os quais, pelos vistos, ninguém suporta) e que normalmente ao sentar-se à mesa do café “depenica tudo em três bicadas”. Voraz e maledicente, portanto. No entender do narrador, será alguém que transmite uma imagem de pessoa gulosa e tagarela. Os dois seres nocturnos (coruja e morcego) têm, no entanto, algo em comum: tal como os morcegos, a impertinente coruja é amiga do ministro das finanças. Trata-se de uma espia bufona, portanto, sempre pronta a denunciar os clientes que não pedem factura. Há ainda o elefante asiático que se entretém a escrevinhar à mesa, pegando na caneta com a tromba enquanto olha pela janela. A sua corpulência, ainda mais do que o discurso que profere é um desafio, uma provocação à política de austeridade cega que recai sobre o mesmo café e sobre os seus clientes. A ele, no entanto, a austeridade não afecta e até se dá ao luxo de criticar a frugalidade dos outros ao classificá-la de anti-patriótica, comentando nestes termos o recibo da despesa do próprio narrador:

«diz-me o proboscídeo: vês algum pastel de nata na coluna do que comeste? Não...estás a ver algum licor beirão na lista do que bebeste? não...mas ainda é cedo para isso... nunca
é cedo para os sacrifícios em nome da pátria, disse-me, e em tom de ameaça enlameada por uma retórica viscosa a lembrar tempos idos de outros animais e outra senhora, perguntou: que achas que te vai acontecer quando chegar ao ministério e entregar ao ministro este relato?»

A corpulência do elefante representa a opulência do funcionário ministerial e governamental que “engorda” com a crise e a austeridade, ao contrário do que sucede com a pátria, a qual em vão invoca, para justificar a maior carga fiscal.

No texto seguinte, assistimos ao confronto entre um rinoceronte (condutor de um camião) e um cão (vagabundo e assediador do veículo ultra-pesado, para tentar dormir dentro do mesmo). Trata-se de um confronto desigual face à disparidade de forças e à ausência de equidade na relação de poder que se estabelece entre ambos. O discurso do narrador traduz o mal-estar que se sente no local, em consequência desta situação e que está patente sobretudo no último enunciado do texto: “bebi o café com algum incómodo”, parodiando a atitude pusilânime do eventual espectador de situações de injustiça, tragédia ou qualquer tipo de abuso, a agir exactamente como quando assiste às maiores tragédias que lhe entram em casa através dos noticiários.

O Corvo transmite uma imagem algo ambígua: se, por um lado, sugere a imagem de alguém que veste de maneira formal, por outro lado transporta consigo mesmo uma certa aura de irreverência, de marginalidade, de ruptura com as convenções, à maneira de um dândi de fin-de-siécle XIX. Este Corvo” de Ricardo Bordalo usa uma capa esvoaçante e fraque, podendo lembrar também o traje do estudante universitário que se diverte a a “praxar” ou simplesmente a humilhar descaradamente os novatos. A imagem que predomina é a de uma personagem saída de um conto de Edgar Allan Poe, um ser essencialmente desestabilizador:

«pousou directamente no tampo da mesa. A deslocação do ar provocada pela asa na aterragem levantou, ligeiramente, as folhas do jornal que não estavam seguras pelo cinzeiro.”

O texto começa com uma descrição que foca o aspecto animal e aerodinâmico do protagonista, o qual só no final da narrativa é humanizado pelo narrador com a imagem de alguém que morre, literalmente, por um cálice de porto.

Na segunda parte do livro, o texto “(d')O Grilo” chama a atenção para a incompletude perceptiva e, regra geral, para a falta de rigor dos estereótipos – o próprio grilo é, ele mesmo, uma categoria à parte no mundo dos insectos, isto é, nem é cigarra (olhada normalmente, como hedonista – graças à fábula em poema de LaFontaine – voltada para o lazer) nem formiga (a tradicional obreira, segundo a mesma fábula, uma verdadeira máquina de trabalho). Não. O grilo adquire, no texto de Ricardo Bordalo, uma conotação mais dúbia que não é, necessariamente, positiva: a de delator dissimulado. O grilo é aquele que “canta” ao ouvido do poder ao serviço “dos ministérios”. Ora como o alocutário do grilo é o próprio narrador, a quem aquele se dirige, deduz-se que este último,,ao mostrar o grilo de uma forma que não é nada simpática aos olhos do leitor, assume uma posição de opositor de tendência que se não for assumidamente anarquista será, no mínimo, de desafio ao poder, usando o escárnio e a sátira como arma. Escárnio esse que traz implícito um profundo desprezo por figuras melífluas como a deste “grilo”. Assim o herói da história passa a ser o sapo, figura com a qual o narrador se identifica e que devora o grilo, devorando também metaforicamente os seus cúmplices, os sabujos, os subservientes àquela autoridade que vê como ilegítima. Os visados são precisamente aqueles que se deixam usar submetendo-se a todas as regras, inclusive as mais absurdas, apenas para conseguir comer. A analogia com o mundo do trabalho é óbvia. O pinguim representa, por seu lado, um certo tipo de trabalhador: o que se submete a todas as regras do mercado, mesmo quando são manifestamente anti-sociais ou geradoras de entropia dentro de um sistema económico dando forma à doutrina que é debitada pelo grilo, o qual tentava, no texto anterior, catequizar o sapo, seu alocutário.

A petulância do chimpanzé no texto seguinte é mostrada com o já costumeiro desdém do narrador (que agora sabemos que se identifica a si próprio com a figura de um sapo) pela esmagadora maioria em relação aos restantes animais. Neste caso, remete o seu interlocutor, ou melhor, a personagem com a qual dialoga, para a categoria de símio inferior o qual, na óptica desta narrador-sapo-recém-recrutado-para-a-maçonaria, se revela na sua excessivamente ridícula subserviência ao clero, acreditando não dever este jamais ser criticado; o alvo das críticas do símio é normalmente o tipo de pessoas como o próprio narrador couraçado na sua postura anárquica e sobretudo de anti-clerical de cariz republicano.

No texto que caracteriza o porco, categoria com a qual o narrador identifica certa espécie de homens que têm o poder de esvair de humanidade o seu semelhante (aqui esta categorização poderia ser um tiro pela culatra para o próprio narrador-sapo, o que só não acontece pelo facto de este também se desumanizar, de certa forma, tendo perfeita consciência do facto), como se percebe no momento em que este confidencia ao leitor: “não há diferença entre as espécies...apenas o talho é diferente.

Já a lampreia, o narrador associa-a aos seres que causam mal-estar, um certo incómodo, típico das criaturas que se “colam” aos outros como uma ventosa como a das lampreias, tal como acontece com as cartomantes, adivinhos e outras espécies de charlatães.

A tríade do caracol, do melro e da lagartixa (o único animal que figura no livro por duas vezes), é construída com base numa estranha relação simbiótica entre estes três elementos, sendo que o primeiro, é alguém que tenta usar de esperteza com os outros mas que se vê completamente ultrapassado pela rapidez dos seus dois outros rivais. Salvo quando acontece uma fatalidade e a sorte se inverte.

A avestruz é o símbolo animal de que o autor se serve para mostrar a atitude do narrador face a humanos encarregues de fazer peditórios para as instituições e se abeiram dos carros de forma mais ou menos agressiva ou, no mínimo, impositiva. É, também, fortemente visado neste texto o tratamento de que os burlados são alvo nos cupões, e a subserviência dos donos dos cafés que os não expulsam, como fazem aos demais pedintes privados, que só o são por necessidade . A hipocrisia é o traço principal do eu colectivo que aqui ocupa o lugar central no texto.

A imagem seguinte é a do crocodilo, a imagem de um perigoso malfeitor que tenta fazer-se passar por um inofensivo mendigo, mas à espera dos incautos que se deixam fascinar pelos supostos diamantes que diz ter incrustados nos dentes...

No último texto, o protagonismo pertence ao texugo, cuja atitude filosófica e questionadora não é mais do que o o resultado do desdobramento do eu do narrador (é o texugo, tão gordo como o sapo, com quem este mais se identifica): é o seu duplo, alguém que tanto aprecia o pequeno-almoço no café como a filosofia e a observação do real. O texugo não é nada mais do que o eco da própria voz do narrador, a projecção da imagem de si.


O livro divide-se em duas partes, sendo os textos que correspondem a a cada uma delas ilustrados a sépia por duas artistas plásticas que detém duas formas opostas de interpretar visualmente os textos de Ricardo Bordalo que passo a explicar. Na primeira parte (do lado azul) é a mão de Rosário Pinheiro que dá a dimensão visual a estes “bichos”, metamorfoseados em humanos ou vice-versa. Na verdade, a ligação das figuras humanas presentes nas ilustrações desta ilustradora é, aparentemente, muito ténue face aos animais alegóricos que são aludidos nos textos de Ricardo Bordalo. O elemento de ligação pode ser um par de as sobrancelhas hirsutas que lembram o dorso de um porco-espinho ou, então, a felpa de uma camisola cujos pêlos eriçados fazem pensar imediatamente no ouriço-caixeiro. É o homem em si mesmo que leva a carga animal a que é caricaturada nos textos e não o bicho propriamente dito. Rosário Pinheiro assume perfeitamente que se está a falar de bichos-homens (ou mulheres). As legendas com citações dos textos que acompanham as respectivas figuras ajudam o leitor a fazer a ponte entre estes dois elementos, humano e animal.

Sobre esta primeira parte, o crítico Rui Coimbra chama precisamente a atenção para o “Eu” das personagens e para a forma como cada um deles é realçado pelo narrador, de forma dotá-los de sentido político e realçar a crítica social que é veiculada através da narrativa:

«...o medo dá aqui lugar à vontade [o caso do bezerro e do pato] e o eu ditatorial esbate-se, permitindo que outros “Eus” se configurem quase com o outro. Estes sistemas não bloqueiam a realidade, que não é conforme ao desejo do ditador, antes constroem liberdade de se tornarem outros que acomodem a realidade.
Nesta série de textos , Ricardo Bordalo apresenta ao leitor alguns territórios de liberdade (…). Nestes lugares, a estranheza é diluída pela proximidade ao contexto de café, lugar de encontros e conversas.»

Na segunda parte do livro (os textos em fundo amarelo-pálido) os temas são ilustrados por Liliana Rodrigues. A artista plástica usa a figura feminina e a versatilidade da respectiva cabeleira para servir da camuflagem ao animal que serve de duplo a cada alma humana ou que com ela se (con)funde. Para Rui Coimbra esta fusão possibilita a construção de novas significações “acrescentando novas superfícies de leitura, criando rupturas e novos lugares para o humano.»

Uma crítica corrosiva, ácida, politicamente comprometida na denúncia exposição de disfunções sociais e arbitrariedades do Poder, de egoísmos diversos que não dispensa a leitura atenta para quem cultiva a veia humorística que vai da mais fina ironia ao mais cortante sarcasmo.


Cláudia de Sousa Dias


Londres, 31 de Janeiro de 2016

2 Comments:

Blogger M. said...

A tomar nota na minha lista de leituras futuras :)
Beijinhos

2:46 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Olá M. Saudades. Este tem uma edição limitadíssima. Se quiseres o livrinho tens de contactar o autor no facebook.

bjo.


C.

2:54 PM  

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