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Friday, August 14, 2015

Egoísta nº 53 – Anjos




Mais uma edição de luxo da revista nacional mais premiada, coordenada por Patrícia Reis, a editora-chefe e, também ela, escritora. Esta número é um belo objecto de colecção, com a sua capa de um vermelho-escarlate e umas alvíssimas asas de porcelana, presas na contra-capa. Asas essas que são destacáveis e se transformam num pires, onde se pode queimar incenso. Imagens, ilustrações e fotografias todas elas formam um conjunto de singular beleza e harmonia de contrastes no qual

um anjo
caiu para
dentro das
páginas de
um segredo.

Não foi só um, na verdade. Foi uma coorte deles. Segredos humanos que os anjos devassam, invadindo o mais íntimo recanto da intimidade de todos os que ingenuamente se julgam a sós, a salvo com a sua consciência ou com os seus pecados. Há-os de todas as formas e feitios. Há aqueles que são uma presença invisível no computador, casa ou mente humana, uma espécie de NSA colocada por uma auto-construída “divindade” humana ou divina, e que tal como os anjos da tradição judaico-cristã tem o poder de se servir da invisibilidade para devassar os segredos mais ocultos de cada utilizador; outros, aqueles que espiam os pecados alheios entrando na alma de cada um, relatando-os ao seu Líder Supremo, Omnipotente e Absoluto, para que este aja em conformidade.

Mário Assis Ferreira, director da revista, disserta no editorial sobre a raiz etimológica da palavra, o seu significado simbólico dentro do mecanismo dialéctico gerado pelo eterno conflito entre o Bem e o Mal para chegar ao tempo em que vivemos nós,  em plena sociedade de consumo, e à imagética do Anjo na publicidade, subvertida aos interesses económicos que imperam durante as festividades do Natal, bem como à ideia generalizada do Anjo no “lar”, aqui já não na qualidade de mensageiro ou espião ou mesmo de “fiscal de pecados”, delator ou justiceiro, mas sim de guardião ou protector da família.

O primeiro a desfilar é o “anjo” de Linda David, uma companhia omnipresente que acompanha e assiste aos últimos momentos de uma personagem sem nome que se encontra agonizante. Este anjo desempenha um papel semelhante a Caronte, figura mitológica que tinha o dever de transportar os mortos da travessia do Estige até ao Hades. A missão deste anjo é de certa forma análoga: guiar, conduzir a pessoa para “o outro lado”, com palavras de encorajamento e esperança. Acompanham o texto duas belas (e provocadoramente sensuais) ilustrações a azul, em alusão directa ao filme protagonizado por Marlene Dietrich, O Anjo Azul.

Ivone Mendes Silva traz “A Mudança” com um texto de narração de terceira pessoa, falando de Margarida , não exactamente a de Fausto (embora pudesse sê-lo), mas uma mulher que é fustigada pelo impulso de evasão contínua. Até se deparar com a figura do anjo, o qual a impede de se mover, no lugar inóspito e isolado como o fim do mundo, onde já ninguém a pode ouvir.

Segue-se o ensaio fotográfico de José Pedro Santa Bárbara, “Anjos Rurais”. Trata-se de uma representação foto-dramática que ilustra a tragédia da decadência. Na segunda parte do ensaio, assistimos à comunhão entre os anjos e a natureza e à fusão destas entidade com os elementos terra e água.

O texto seguinte é a tradução de Paula Castro e José Daniel Ribeiro de um original de Stig Dagerman: “A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”. O texto, de teor essencialmente existencialista, está construído do ponto de vista do anjo que se vê imortal e omnisciente ma,s ao contrário da Divindade, revela-se impotente quando se trata de mudar ou influenciar o destino do mundo ou do Universo, uma vez que a sua própria condição de anjo o impede de comunicar de forma bilateral com os seres terrestres.

O poema da Maria Teresa Horta deste número da revista é mais um exemplo de como os anjos povoam a escrita da autora de A Paixão de Constança H. e As Luzes de Leonor. A voz narrativa do poema coloca-se à “pele” de um anjo como os que no livro do Génesis sofrem de desejo, ansiando pelo prazer, enquanto cobiçam as mulheres terrestres, trocando a imortalidade pelo conhecimento das sensações físicas. Um destes anjos surge novamente entre nós, caindo no poema de deliciosa provocação e inequívoca beleza literária de Maria Teresa Horta. A dar-lhe corpo, e a enfatizar ainda mais esta ideia, segue-se depois o fabuloso ensaio fotográfico Ludovic Florent “Poussière d'Étoiles” de onde emergem a agilidade, a leveza e a perfeição dos corpos, transmitindo a ilusão de serem estas figuras humanas os seres alados de que falava o poema que se lhe antecede: anjos que emergem da poeira estelar inter-galáctica.

Patrícia Reis é autora do texto para a banda desenhada da autoria de Rodrigo Prazeres Saias, que nos coloca diante dos olhos o lugar da desolação, o posto de vigia do anjo que vê tudo e todos do alto da sua solidão, em plena noite de Inverno, recolhendo bebés nados-mortos, os “não-seres” para os levar para o céu. Mas a sua verdadeira missão é encontrar-se com o “deus”, cujo “eu” é ainda mais solitário do que o seu próprio.

Língua do Coração” é o texto que se segue, da autoria de Maria João Costa, de narração homodiegética para falar de seres diferentes de nós, humanos, situados algures entre o “nosso” mundo e o “outro”. Os anjos imaginados pela narradora são apenas aqueles que falam “a língua do coração”.

O ensaio fotográfico de Cláudio Garrido mostra-nos um conjunto de anjos vegetais, árvores de folha caduca em pleno Inverno, sob um céu azul-gelo, intitulado “Quintetos”.

O conto de Cristina Carvalho para esta revista chama-se “O Anjo do Rés-do-chão”. Contada em discurso coloquial, muito próximo à oralidade, a história desvenda-se em tom despreocupado, como quem confidencia um facto inusitado a um amigo, à mesa de um café. o conto aborda a temática de uma solidão interrompida pela presença misteriosa de um ser etéreo, de voz suprema, ou talvez divina, que um dia se desvanece no ar, sem deixar vestígios de ter algum dia existido...Um conto de inspiração nitidamente gótica.

Justapondo-se à ilustração das cintilantes luzes nocturnas que arrancam a cidade à escuridão da autoria de Henrique Cayatte, surge-nos um belíssimo texto de Luís Represas com um discurso híbrido situado algures entre a poesia e a prosa, com uma piscadela de olho a Hemingway pela alusão no texto ao romance “O Sol nasce Sempre” , onde o narrador autodiegético, no extremo da pista de dança, recebe a visita do Anjo...

Nuno Camarneiro recria a história de “O Anjo Azul”, a partir da interpretação clássica de Marlene Dietrich, já aqui aludida por Linda David, mas agora transportada para um night-club contemporâneo, desprovido da aura de glamour dos cabarés de Berlim dos anos trinta, revelando o mundo decadente das casas de alterne no século XXI...O ensaio fotográfico de Berndnaut Smilde que se lhe segue é composto por suaves e fofas nuvens brancas que pairam sobre interiores cinzentos e frios para sugerir uma presença sobrenatural, devido ao intenso contraste entre as petrificadas ou metalizadas construções humanas e a inconsistência das nuvens que pairam nos mesmos espaços. Uma questão de densidades, cuja sobreposição resulta num efeito surrealista, a sugerir a presença de entidades ainda mais incorpóreas do que as próprias nuvens. Anjos, claro.

Rute Coelho fala-nos de morte e esquecimento. E do renegar de um anjo da guarda, num texto tão cru como o caminho pedregoso que leva ao fim da existência.

A seguir, acompanhados pela belíssimas ilustrações de Teresa Dias Coelho, chegam-nos os dois  mais belos textos em prosa da revista, escritos em parceria por Maria Manuel Viana e Patrícia Reis. Maria Manuel Viana exprime “O desejo de Asas (variações sobre o tema dos anjos e do desejo)", onde o narrador heterodiegético descreve as atitudes e pensamento da protagonista, uma mulher imersa em solidão, que faz da vida uma cruzada em busca de dois ideais: a Beleza e a Bondade, valores absolutos que somente conseguirá encontrar reunidos na figura angelical que aparece a dada altura no conto. A beleza plástica do texto e das imagens que estão subjacentes ao discurso deste narrador criado por Maria Manuel Viana, mostram o domínio perfeito da técnica narrativa e do uso da linguagem, na forma como é descrita a relação entre a mulher e o anjo, uma relação onde há afinidades mas onde não é possível haver paridade entre os dois seres. O texto de Patrícia Reis, “Da possibilidade de se ser triste sem asas (andamentos sinfónicos sobre a bondade)” segue esta mesma linha, prosseguindo a construção de um diálogo inter-textual entre a voz do seu narrador e o narrador de Viana, mas assumindo uma outra perspectiva, a do anjo. O narrador de Reis estabelece uma relação dialógica com o texto precedente, completando-o. O discurso assume um tom de desafio, inequivocamente provocatório, substituindo o tom melancólico e de nostalgia presente no conto de Viana. Duas belas peças literárias.

Sebastião Reis Bugalho presenteia-nos com um conto cujo cenário decorre num restaurante popular, lotado, onde os protagonistas têm de jantar na marquise, reservada aos fumadores, por falta de espaço. O lugar, apesar da popularidade, exibe uma atmosfera algo decadente e de algum desleixo, facto que é denunciado pelo calendário na parede, com data já de dois anos de atraso. Por outro lado, a irrevogabilidade do destino do lavagante (trata-se de uma marisqueira) no aquário (ser comido) indiciam a crueza do tema principal do texto. O casal dissonante na mesa causa uma sensação de estranheza no leitor que começa já a suspeitar que algo de trágico vai ocorrer e de que a relação de poder entre os dois protagonistas poderá inverter-se, também. A atitude paciente e passiva da mulher que assume a postura de ouvinte resignada contrasta com o tom de gabarolice do companheiro. Mas a ironia corrosiva, patente na forma como o narrador expõe toda a situação, desde a vacuidade dos diálogos à superficialidade dos temas abordados, põe a nu o ridículo que está impresso na forma como os dois casais à mesa tentam, inutilmente, ostentar um estatuto sócio-económico que já não possuem. A tragédia, indiciada pela impotência do lavagante em lutar contra aquilo que o espera e para o qual não está minimamente preparado, apresenta-se com a mesma implacabilidade aos dois protagonistas, funcionando o restaurante como o macro-aquário onde se movimentam os peixes e os lavagantes humanos. A seguir à consumação do destino das personagens, após saírem do "aquário", existe apenas o inferno construído pelo anjo sádico com a sua visão cínica, triste e anti-erótica do mundo e do penitente que recusa abandonar a sua "cruz".

O último intervalo visual nesta Egoísta povoada de “Anjos” consiste num mostra de etérea figuras angelicais, envoltas em levíssimas vestes brancas, flutuando na água, como se estivessem no espaço, totalmente libertas das leis da gravidade. 

Seguem-se ainda as imagens de três quadros de Teresa Dias Coelho: o primeiro, nitidamente inspirado num quadro de Dürer, e os seguintes com as paisagens de um céu azul-pálido de Inverno, povoado de nuvens de tonalidades várias.
























O último anjo desta Revista é de Ana Maria Pereirinha, que nos apresenta um texto ilustrado por Manuel San Payo, uma reflexão sobre a memória, a infância e a inspiração dada pelo anjo que, aqui, usurpa o papel das antigas musas dos poetas. Natália Correia surge nesta peça com o estatuto de “anja”, a poeta que é invocada e evocada na homenagem aos seres alados que esvoaçam na mente, fecundando a imaginação e e criação humanas.


Cláudia de Sousa Dias


09.06.2015


Quadro de Teresa Dias Coelho para a Egoísta #53

5 Comments:

Blogger Claudia Sousa Dias said...

As pessoas que gostam deste artigo na página do grupo "o que andamos a ler" no facebook.

https://www.facebook.com/groups/366036136807459/permalink/888825997861801/

7:00 PM  
Blogger linda david said...

Muito obrigada pelas suas referências e pela sua interpretação do meu conto.
Ê verdade, a revista Egoísta é um objecto de culto, um belo objecto de colecção.

12:52 PM  
Blogger M. said...

Ui, onde é que eu compro? Fiquei apaixonada por esta edição!
Beijinhos :)

4:27 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada, Linda David, pelo comentário e pela visita.

9:20 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

M. tens de encomendar!

9:20 PM  

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