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Saturday, June 13, 2015

A Paixão de Constança H. de Maria Teresa Horta (Bertrand)




Maria Teresa Horta quase que dispensa apresentações. Já se falou dela aqui, neste mesmo blogue, a propósito de “Azul-cobalto”, o conto que faz parte da antologia Doze Histórias de Mulheres, primeiramente publicado em 1999, e agora reeditado na compilação de contos de MTH intitulada Meninas. “Azul-cobalto” é uma precuela do romance de que falamos hoje, publicado pela primeira vez cinco anos antes do referido conto ver a luz do dia.

Teresa Horta é sobretudo uma poetisa – este ano reedita-se uma das suas primeiras obras do género Minha Senhora de Mim, publicado pela primeira vez em 1971 – embora nas últimas décadas também se tenha destacado como romancista.

 Maria Teresa Horta tendo nascido em 1937, para além de se dedica ao jornalismo e à escrita literária, foi a primeira mulher em Portugal a ser directora de um cine-clube. E, talvez por isso mesmo, o cinema, sobretudo os clássicos das décadas de ouro em Hollywood (1940 até finais dos anos '60 do século XX) e o Cinema Francês da nouvelle vague influenciaram largamente a sua escrita em prosa.

Na contracapa desta edição de A Paixão de Constança H. de 2010, está escrito:

A obra literária de Maria Teresa Horta tem, frequentemente contribuído para alterar os modelos estéticos e comportamentais instituídos e tem, muitas vezes, sido ao longo das últimas décadas, um sinalizador de mudanças essenciais, quer no âmbito literário, quer inclusivamente de alcance social.

A Paixão segundo Constança H. traz consigo toda a violência e todo o sofrimento daquele a quem coube em sorte viver num mundo em transformação onde os valores tradicionais da família e os aspectos a que nos tínhamos habituado a considerar mais estáveis resvalam gradualmente para um terreno irrespirável”.

Estas afirmações só se tornam inteligíveis se, entretanto nos inserirmos no contexto da produção da sua obra e após a leitura do romance e do conto "Azul-cobalto", que lança uma nova luz na compreensão do romance: A Paixão de Constança H é lançado pela primeira vez na primeira metade dos anos '90 do século XX, altura em que ainda se operavam importantes transformações na sociedade relativamente à forma de encarar a sexualidade feminina. Trata-se de uma história que contém uma trama desenvolvida a partir de um continuum cujos extremos são a sanidade e a loucura. E, algures no meio desse continuum, está o limite, mais ou menos estreito e mais ou menos difuso, uma zona fronteiriça, cinzenta a separá-los. Toda a história é construída a partir do Eu de uma protagonista que tem todos os traços de uma personalidade de estado limite ou personalidade borderline, que vagueia ora de um ora de outro lado na fronteira. E que, na forma desconcertante como reage a um permanente estado de insegurança, que a vai arrastando progressivamente para o abismo, lembra algumas personagens femininas dos filmes ou o contos de Hitchcock, na maneira como é projectado o Eu desta personagem e na forma como é apresentada a emergência do estado de loucura e de lidar com a culpa. Freud é outra grande influência na forma como está construído o romance, vertido como se de um conjunto de sessões de psicanálise, abrangendo vários depoimentos e discursos para se obter um conhecimento mais profundo e complexo da personagem em questão se tratasse. A protagonista deste romance, Constança, é também a narradora de “Azul-cobalto”, que no conto relata em tom confessional a sua própria infância centrando-se na relação conturbada com a mãe e no processo doloroso de construção de uma identidade própria.

A ligação entre ambas as histórias é percebida devido à coincidência de episódios e cenas referentes à infância de Constança, envolvendo a mãe da protagonista, que ocorrem em “Azul-cobalto” num tempo cronológico anterior ao do romance de que hoje aqui tratamos. Outra característica comum a ambas as histórias, para além da referência à cor azul-cobalto dos olhos da mãe de Constança em ambas as histórias, é a presença do gérmen da loucura que ameaça constantemente a protagonista, emergindo de uma necessidade de amor exigente, permanente, raiando a obsessão na voz da protagonista. O páthos nasce da insegurança e de um omnipresente medo da indiferença e de um hipotético abandono. Abandono que depois se torna efectivo. Em ambas as histórias a trama é vertida exclusivamente pelo ponto de vista da protagonista.

O impacto do texto de A Paixão de Constança H. no leitor torna-se violento devido à centralidade da protagonista, sempre que o texto é narrado na primeira pessoa e à extrema passionalidade das emoções que são vertidas no discurso da personagem. Mas até mesmo quando o discurso passa a ser narrado na terceira pessoa e o narrador reproduz o pensamento da personagem como se habitasse o cérebro da mesma é notória essa violência de sentimentos. A técnica narrativa usada é o discurso em Quasi-PEC (Quasi Pris-En-Charge), que aproxima de tal forma o narrador da personagem que se torna por vezes difícil verificar a quem é imputado o discurso. O narrador utiliza o jogo dos tempos verbais como estratégia discursiva para ajudar o leitor a fazer um pouco essa distinção: no caso deste romance, é usado o pretérito perfeito e imperfeito, na forma de discurso indirecto, para ilustrar os comportamentos observados, e o presente do indicativo, com valor de presente histórico, para aproximar o narrador da personagem como que entrando no seu universo interior e diluindo a fronteira entre o tempo narrativo ou cronológico (constituído pelo desenrolar dos acontecimentos, com as suas interrupções, avanços e recuos) e o tempo de enunciação (o momento da produção do discurso pelo narrador). É precisamente nesta altura, em que a aproximação do ponto de vista do narrador e da personagem é tal, que o discurso do narrador adquire a sua forma híbrida de Quasi-PEC, em que quase se pode imputar a responsabilidade dos enunciados a qualquer um dos dois enunciadores, neste caso ou ao narrador-locutor ou à protagonista. Mas na maior parte dos casos o que acontece é que, apesar de ser o narrador a fazer a locução, isto é, ao proferir o discurso no momento de enunciação, nas frases surgem no presente do indicativo e no gerúndio, é ilustrado sobretudo o pensamento e as emoções de Constança H. Vejamos, então a diferença e o impacto das duas “vozes” presentes no mesmo discurso (itálicos meus):

« E a dor continuava, tumefacta. A sensação de perda envenenando-a, espalhando a morte dentro de si.
O ódio.
O começo do ódio a engrossar, sem remédio, no seu peito, tentacular, repetitivo e por isso mesmo com uma incidência única em todos os momentos da vida a partir em todos os momentos da vida a partir desse momento: quando Henrique falou: quando Henrique falou da sua traição.
“É o amor que me perde”, pensa Constança.
O ódio, pelo contrário, alimenta-a.
O amor queima-a. Desguarnece-a. O amor reduz a cinzas, é a porta do caos e do desassossego. Quebra-a.
Quebra-a.
O ódio, pelo contrário, fortalece-a. Pertinaz, forra-lhe as emoções, nunca a entrega. E a odiar, as mulheres são melhores do que os homens. Como diz Françoise Giroud, “elas podem ser duas e frias como pedras, com arame farpado no coração.
Constança sabe, sente-o crescer no seu peito, como se fosse uma planta, tomando conta de todo o seu imaginário, de todos os seus sentimentos, de todos os seus pensamentos: o arame farpado.» (p. 23).

Todos os enunciados com os verbos a itálico no presente do indicativo, apesar de serem proferidos pelo narrador, são na realidade expressão do pensamento e forma de sentir de Constança, citados pelo narrador. De notar que a frase com sujeito elidido (o amor) “Quebra-a” é enunciada duas vezes: a primeira dentro do parágrafo com uma série de enunciados que têm por sujeito “o amor”, mas a segunda vez em que é proferida surge separada do parágrafo anterior, como se fosse um eco.

Apesar de esta forma de escrever ter muito a ver com a escrita literária de Virginia Woolf, a escrita fragmentária de A Paixão de Constança H., tão profundamente passional, é sobretudo durasiana. Marguerite Duras é, inclusive, referenciada no discurso da narradora enquanto enumera os autores preferidos de Constança e que ajudam a construir a identidade desta (p. 56), a par de Clarice Lispector, Sylvia Plath, Mariana Alcoforado. Inserido no corpo do texto, há trechos de narração em primeira pessoa, como bilhetes, cartas e poemas de Constança, atestando as sucessivas alterações da personalidade na protagonista e as diversas facetas do seu Eu, podendo-se traçar um paralelo entre a solidão e o desamor descritos e sentidos relativamente à infância de Constança em “Azul-cobalto” e as crianças filhas de Constança, no romance do qual falamos hoje e ajudando a dotar o discurso de A Paixão de Constança H. da dimensão polifónica que o caracteriza.

A Paixão de Constança H. é, mais do que tudo uma tragédia que se aproxima muito dos clássicos gregos, desenvolvendo-se em crescendum através da desestruturação do Eu assente no minar da autoconfiança, podendo por isso ser facilmente ser transformada num drama neo-clássico e levada à cena.

Maria Teresa Horta subverte ainda, neste livro, não apenas as convenções do comportamento ou da sexualidade, escrevendo sobre aquilo que causa incómodo ainda hoje numa sociedade durante muito anos submetida ao poder patriarcal, mas também as convenções da narrativa, onde a poesia se cruza com a prosa adquirindo, por vezes laivos de romance epistolar. A nível temático o toque de provocação surge com a oposição entre Eros e Tánatos (o Amor e a Morte) patentes nas descrições eróticas a par de cenas da morte como a cena na banheira (tão ao gosto de Hitchcock, quem não se lembra do filme Psycho?) que são sempre testemunhadas pelas crianças, e que é uma das características mais violentas da trama. A cena com o cão debaixo da árvore, resultando na morte de Adèle, remete para cenas relacionadas coma mitologia clássica (recordando Diana e Ácteon, por exemplo). A junção do elemento, surpresa, o inesperado, é outra das características dos filmes de Hitchcock, que está fortemente implicada neste romance. O mistério a ambiguidade do destino da personagem que aparenta estar prisioneira mas nunca se chega a saber a verdadeira natureza da sua clausura, se estará naquela situação por motivo de uma doença de cariz psiquiátrica ou por lhe ter sido imputada a autoria de um crime. Trata-se de uma estratégia discursiva escolhida pela autora, uma omissão intencional que só confere (ainda) maior valor literário ao texto. 

Por todas estas razões Maria Teresa Horta surge aos olhos do público leitor como uma figura incontornável para quem aprecia a escrita submetida ao Belo, mas sempre alienada de estereótipos e sempre disposta a ultrapassar limites.

Cláudia de Sousa Dias
07.03.2015


4 Comments:

Blogger Claudia Sousa Dias said...

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12:11 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

No grupo "o que andamos a ler"

Ana P. P. Ribeiro gosta disto.

Ana P. P. Ribeiro Essa obra da nossa querida MTH, ainda não li..., mas deve ser muito boa, já li a sua opinião no blogue e gostei.
8 h · Não gosto · 1

12:14 AM  
Blogger M. said...

Maria Teresa Horta é admirável e multifacetada. E assim és tu também :)

10:10 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Oh, não, nem se compara!

12:28 AM  

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