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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, August 29, 2014

“A Cabeça Muda” de Cláudia Lucas Chéu (Cama de Gato)




Cláudia Lucas Chéu é uma autora já com um vasto leque de publicações editadas sobretudo dentro do género dramático, mas ainda à qual não tem sido dado o destaque que seria de esperar. Talvez pela audácia dos temas, que geralmente incomodam ao abordar assuntos tabu, ou pelo facto de ser ainda muito jovem, o que em Portugal perece ser um handicap na escrita feminina para se obter reconhecimento.

CLC é lisboeta, nascida em 1978 e é membro fundador do Teatro nacional 21. Frequentou o Curso de Línguas e Literaturas Modernas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e concluiu o Curso de Formação de Actores da Escola Superior de Teatro e Cinema. Publicou uma mancheia de peças de teatro de entre as quais:

Glória ou como Penélope morreu de Tédio, Poltrona – Monólogo para uma Mulher,ambas nas Edições Bicho-do-Mato; depois, Colapso, das edições Teatro Nacional S. João; Violência – Fetiche de Homem bom, Círculo Onanista, Bank, Bank You're Dead e Europa, Ich Liebe Dich todas elas na Edições Bicho-do-Mato/Teatro Municipal D.Maria II; e ainda a micro-peça Circle-Jerk na Revista das Artes Escénicas. Lucas Chéu é também poeta tendo sido algumas das suas composições incluídas na antologia Meditações sobre o Fim das Edições Hariemuj. Foi galardoada com o Emmy Award como membro integrante da equipa de argumentistas para uma produção televisiva. Tem também textos publicados na Revista Flanzine de cuja direcção fazem parte João Pedro Azul e Vicente Alves do Ó.

A Cabeça Muda da editora Cama de Gato é mais uma prova do talento desta Autora como dramaturga, uma sátira corrosiva, género e estilo literários que parecem ser da sua preferência. O conteúdo tem algo de pírrico, na forma como aborda o tema do constante apelo à construção de uma sociedade composta por super-homens cada vez mais exigida pela civilização da era industrial e da sociedade do consumo. Aqui, a velhice o o lirismo não têm lugar e são encarados como uma espécie de cancro a ser extirpado. Esta é uma peça que trata o apogeu do individualismo na sua faceta mais crua.

O protagonista é um jovem cínico, obcecado pela sua ideia de perfeição, Klaus, e Mutti (mãezinha, em alemão), uma mulher idosa, em franco declínio físico, a qual pressupomos que possa ser sua mãe e cujo estado clínico, físico e psíquico, parece evoluir a uma velocidade galopante para um estado vegetativo. Na verdade, à medida que a história progride, esta figura feminina parece ser progressivamente dominada pelo vampirismo de Klaus, acabando por se transformar numa cabeça muda. O cinismo de Klaus, para quem as pessoas não passam de objectos, acaba por sufocá-la. O texto é inequívoco na crueza e impiedade da linguagem enunciada por esta personagem maléfica. A total ausência de empatia por parte de Klaus, conjugada com um profundo egoísmo resultam na expressão da decadência, senão mesmo do apodrecimento dos valores do Humanismo, enquanto modelos de conduta que durante muito tempo foi a viga-mestra da civilização europeia. Este Humanismo, que surge na história representado por Mutti, é sacrificado em homenagem ao culto da Perfeição, seu filho e amante, cujo resultado é a sociedade sobre-humana, constituída por super-homens, representada por Klaus. Esta é a sua única utopia, de onde emerge uma obsessão tal que afasta Klaus da realidade e atira Mutti para um mundo de eterno silêncio. Só lhe restando então ser uma cabeça muda.

Esta é uma peça que será levada à cena no Teatro da Comuna a partir do próximo dia 17 de Setembro. Uma obra elaborada para desassossegar os espíritos.


Se puderem, não percam.


10.07.2014 – 28-08-2014

Cláudia de Sousa Dias

Sunday, August 03, 2014

“Obra ao Negro” de Marguerite Yourcenar (Dom Quixote)



Tradução de António Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes


Para quem não está familiarizado com a obra da Autora, Marguerite Yourcenar estreou a sua actividade literária em 1929, com a publicação de Alexis ou le Traité du Vain Combat. Publicou dez anos depois Le Coup de Grace (O Golpe de Misericóridia) que foi adaptado ao cinema pelo cineasta Volken Scholendorff. No início da década de cinquenta do século XX publica Mémoirs d'Hadrien (Memórias de Adriano) uma das suas obra-primas. A outra será esta de que hoje aqui falamos, Ouvre au Noir (Obra ao Negro). Yourcenar passou a ser membro da Academia Francesa em 1981. Terminou os seus dia em retiro numa ilha da Costa Leste do EUA.


Nesta edição da Dom Quixote está incluída uma nota explicativa da Autora à laia de posfácio, com o intuito de esclarecer os leitores acerca do processo de construção da narrativa, as fontes consultadas, as correntes de pensamento, as principais influências que sofreu durante o processo de concepção de uma obra de tal magnitude, abrangendo um dos períodos mais conturbados da História da Europa. O romance é assim o resultado do cruzamento de várias correntes filosóficas, artísticas, concepções religiosas que marcaram o fim da Idade Média e transitaram ainda durante bastante tempo para a época seguinte apesar do desabrochar do Renascimento. No romance está já patente a ascensão fulgurante da Burguesia e o peso do poder este grupo social que emergiu das camadas mais abastadas das classes populares começa a fazer-se sentir na estrutura social que está a deixar de ser tripartida, isto é, a deixar de ser composta unicamente pelo Clero, a Nobreza e o Povo. Ou seja, em termos económicos despontam os tentáculos do mercantilismo e, no aspecto religioso, está-se já no período da Contra-Reforma a coincidir com a proliferação das mais diversas seitas de cariz protestante, cuja dissidência e rivalidade acirrada marcavam sobretudo o ambiente social da Europa Central e do Norte.

A autora começa por introduzir a epígrafe de Pico della Mirandola, a dar o mote da narrativa:

«Não te dei, ó Adão nem rosto nem lugar que te seja próprio,nem qualquer dom particular, para que teu rosto, teu lugar e teus dons os desejes, os conquistes e sejas tu mesmo a possuí-los. Mas tu, que não conheces qualquer limite, só mercê do teu arbítrio, em cuja mãos te coloquei, te defines a ti próprio. Coloquei-te no centro do mundo para que melhor pudesses contemplar o que o mundo contém. Não te fiz nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal, para que tu, livremente, tal como um bom pintor ou hábil escultor, dês acabadamente a forma que te é própria.»

A forte perturbação sofrida em todo o tecido social da Europa que é característica desta época conturbada, vê nascer do caos o movimento Humanista, corrente filosófica que pretenderá substituir a visão Teocêntrica do Universo pela visão Antropocêntrica a qual vemos implícita na epígrafe, cuja ideia principal é a de que é o homem que se acaba a si mesmo, ao completar a obra da natureza (ou a obra divina), estimulando o bom desenvolvimento do corpo e espírito. Também, na mesma epígrafe, a ideia de que o entendimento, o intelecto superior atribuído à alma humana lhe confere um sentido acrescido de responsabilidade, cabendo ao mesmo Homem o papel de preservar o mundo tal como lhe foi dado ou simplesmente destruí-lo quer seja por avidez quer por inércia.


Posfácio da Autora

«O romance que se acaba de ler tem, como ponto de partida, uma narrativa de cinquenta páginas, D'aprés Dürer publicada juntamente com duas outras novelas, também de fundo histórico, no volume intitulado La Mort conduit l'attelage, ed Gasset, 1934. Essas três narrativas unificadas e ao mesmo tempo contrastantes, mercê de títulos que lhes foram posteriormente aplicados – D'aprés Dürer, D'aprés Greco, D'aprés Rembrandt –, não eram mais afinal que fragmentos isolados de um enorme romance concebido e parcialmente escrito entre 1921 e 1925, entre os meus dezoito e vinte anos.
Do que poderia ter sido um grande fresco romanesco, abarcando vários séculos e vários grupos humanos ligados entre si quer pelos laços de sangue quer pelos do espírito, nasceu o primeiro capítulo, uma quarenta páginas inicialmente, intituladas “Zenão”. Esse romance, demasiado ambicioso foi sendo escrito a par com os primeiros esboços de uma outra obra que mais tarde viria a chamar-se Mémoirs d'Adrien (Memórias de Adriano). Renunciei provisoriamente a ambos por volta de 1926 e os três fragmentos já citados transformaram-se em La mort conduit l'atellage, vieram a aparecer, quase sem emenda, em 1934, apenas acrescidos no que respeita ao episódio de Zenão, de uma dezena de páginas muito mais recentes, um breve esboço do encontro de Zenão com Henrique Maximiliano em Innbrück, na Obra ao Negro, agora apresentada.

(…)

A primeira parte de “Obra ao Negro” segue de muito perto o esquema de “Zenão” - D'aprés Dürer de 1921-193; a segunda e a terceira parte são inteiramente deduzidas desse texto escrito há já quarenta anos.»

Segundo a Autora, o título de 1934, apresenta aquelas três narrativas como se fosse quase um hipertexto da obra dos três pintores, o que não corresponde exactamente à verdade. Isto porque “D'aprés Dürer” inspirada na obra do pintor, intitulada “Melancholia”, cuja figura central, de aspecto sombrio, é provavelmente a incarnação do género humano que se apresenta perdida em reflexões, no meio dos seus cilindros, tal como Zenão, sendo aquilo a que um leitor mais purista classificaria ser uma história mais flamenca que alemã. Mas para a Autora já à data da publicação de Obra ao Negro, essa afirmação corresponderia à verdade nessa altura, mais do que na primeira narrativa, dado que a segunda e terceira parte, então inexistentes, se passam na verdade, na Flandres e os temas de Bosch e Brueghel, por exemplo, que ilustram a desordem e o horror do mundo, invadem a segunda versão da obra, facto que não se encontrava no primeiro esboço.

A obra trata da história de uma dissolução, de um sistema económico (o feudalismo) que dará origem ao mercantilismo a par da génese das sociedades industriais tal como as conhecemos hoje em dia, tal como o tecido social que a compõe. Trata-se da dissolução de um regime, da morte de uma Era contada em três movimentos, tal como numa tragédia em três actos, ou da ascensão, estagnação e desaparecimento (ou aniquilação) de um homem que representa uma forma de pensar independente, uma voz crítica. Mas o final representa também a alvorada de uma nova ordem mundial.

As convulsões sofridas pela Europa que nos são escritas em “A Obra ao Negro” são de cariz semelhante àquelas que são sofridas no terreno, sempre que há um contexto de Guerra disseminada por vários pontos do continente. Assim, no século XVI, assistimos a um processo de transformação profunda muito semelhante àquele que sofreu a Europa com as duas Grandes Guerras do Século XX (de lembrar que o livro começou a ser escrito a partir do interregno entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial tendo sido publicado apenas já depois de a última ter terminado). Por outro lado, torna-se inquietante observar, quando lemos uma obra como esta, que muitos dos sinais que antecedem, normalmente um contexto de Guerra generalizado na Europa ocorrem nos nossos dias, tendo nos bastidores os mesmos agentes que determinam as condições económicas e sociais em contextos semelhantes, com o objectivo de proteger uma classe dominante mas minoritária que nem sempre estará àfrente de um Estado mas que quase sempre o controla, directa ou indirectamente. É o caso do banqueiro que empresta dinheiro ao Rei, por exemplo. Assistimos na “Obra ao Negro” uma certa modificação naquilo que compõe o tecido social das elites com as ascensão da burguesia, com tudo aquilo que tem de positivo (o desenvolvimento científico e o apoio às artes, libertação da servidão) e de menos positivo (uma maior dependência do estado do sector financeiro).

O protagonista de Obra ao Negro é o filósofo Zenão, um sábio que é movido pela inquietude interior que o impele a procurar um mundo onde os valores maiores sejam a liberdade de pensamento e a procura e criação de conhecimento. O caminho percorrido pelo filósofo é espinhoso, dada a conjuntura de instabilidade generalizada um pouco por toda a parte, mas fá-lo. O preço a pagar é altíssimo: o desenraizamento, o apagamento social e por fim, a própria vida. É obrigado a prosseguir o seu caminho na errância, encontrando uma estabilidade temporária na Escandinávia, mas nem aí está assegurada a liberdade completa de pensamento, nem de acção, fruto das rivalidades de todos os que ambicionam a sua posição. Na segunda parte, Zenão refugia-se no anonimato e na clandestinidade para prosseguir a sua busca de conhecimento que pretende aplicar em nome do bem comum até à dissolução final da matéria do seu próprio corpo. A morte apanha-o à traição, precisamente na altura em que está mais próximo de chegar à sua “opus nigrum”, ou seja, de entender o processo de desconstrução dos modelos ou das Formas, se quisermos usar o termo platónico, para propiciar um novo paradigma de concepção do Mundo. Mas uma vez está patente que o conhecimento da verdade implica uma busca, uma eterna demanda através de um caminho interminável, em direcção a um ponto de fuga onde esta parece estar posicionada, sempre na linha do horizonte. É por essa razão que Zenão, ao identificar-se com essa mesma busca, personifica a figura do Homem Intemporal.

Estrutura e Progressão da Narrativa

A acção do romance é, como se disse, tripartida. Há um primeiro momento de ascensão onde Zenão se movimenta, num cenário de transformação constante – A Vida Errante –, um segundo momento, em que atravessa uma fase de relativa estabilidade, mas fechado em si mesmo, obrigado a permanecer incógnito, situação que contém em si o germe da entropia - A Vida Imóvel – e, por último a fase da dissolução, da paralisação total, do accionar do processo de entropia – A Prisão.

Obra ao Negro poderia muito bem tratar-se de uma trilogia com os três volumes publicados separadamente tal a densidade da história que suga a atenção do leitor como um buraco negro, obrigando a uma leitura lenta, reflexiva e concentrada.

Em termos gerais, o que Marguerite Yourcenar descreve ao longo deste livro tripartido, que ultrapassa o devir e o questionamento existencial de Zenão, que é o próprio drama existencial da Europa num cenário caótico de um cisma religioso, de onde emergem seitas dispostas a matar e a morrer pela sua verdade que crêem absoluta. Enquanto isso, nos bastidores, de forma sub-reptícia a riqueza aparentemente infinita da banca seduz os Reis que perseguem objectivos expansionistas, ao subsidiar-lhes as guerras que lhes satisfazem o desejo insaciável de poder. A burguesia toma o freio nos dentes e ameaça rivalizar com a aristocracia pela posição dominante da sociedade. Afinal a História, com todas as suas dissoluções e reedificações, nada mais é que a história da circulação das elites, que mexem as forças ocultas desencadeadores do caos que gera a mudança.

No meio de tudo isto, Zenão é um homem de especial visão e talento, mas tem uma relação que se torna controversa face ao poder a partir do momento em que decide defender a sua independência acima de tudo. A força motriz do romance é precisamente a oposição entre o saber e o poder, duas forças que, no romance de Yourcenar, se encontram quase sempre em conflito. O confronto final significará que um deles terá forçosamente de sair derrotado. Já no cárcere, Zenão assiste à dissolução da Europa que sempre conheceu, perecendo junto com ela, mas mantendo o seu sonho intacto: o conhecimento como motor do desenvolvimento a sua única utopia.


“Obra ao Negro” é assim como um fresco imenso sob a forma de discurso que retrata uma Europa em convulsão devido a um choque ideológico, religioso, político, económico e social como pano de fundo, e que transmite um ethos não só de desajuste no discurso do narrador sempre que se refere a Zenão, mas sobretudo de perseguição de um fim último: o da total liberdade de pensamento e expressão que foi desde o final da Idade Média até ao início do século XXI a Grande Utopia do Sonho Europeu.



Cláudia de Sousa Dias