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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, September 19, 2013

“Somos o esquecimento que seremos” de Héctor Abad Faciolince (Quetzal)


Tradução de Margarida Amado da Costa


Biobibliografia:

Héctor Abad Faciolince nasceu em Medellín, Colômbia, tendo aí iniciado os cursos de Medicina, Filosofia e Jornalismo, sem no entanto concluir nenhum deles, sendo inclusive expulso da universidade Pontifícia Boliviana, por ter escrito um artigo polémico contra figura do Papa, na altura. Estávamos nos anos 1980. Paradoxalmente, decide emigrar para Itália, país onde encontra finalmente a sua vocação e se licencia em Línguas e Literaturas Modernas. Regressou depois à Colômbia, em 1987, ano em que as milícias paramilitares lhe assassinaram o pai em que ele próprio sofre ameaças de morte.

Refugiou-se então, novamente em Itália, onde exerceu o cargo de leitor da cadeira de Espanhol na Universidade de Verona, até 1992, ano em que regressou, desta vez definitivamente, ao país Natal. Exerceu, também, a actividade de tradutor das obras de Umberto Eco e G. Tommasi di Lampedusa para o castelhano.
Após o seu regresso, passou a dirigir a Universidade de Antioquia tendo dado, a partir de então, início à sua carreira de escritor, apesar de o interesse e a actividade da escrita lhe tenha despontado muito antes. Héctor Abad Faciolince começou por escrever contos e poemas com apenas doze anos e tinha já vinte e um quando ganhou o primeiro Prémio do Conto Nacional Colombiano, em 1980, com o título Piedras de Silêncio, sobre um mineiro soterrado numa derrocada. Ainda em Itália, escrevera já o seu primeiro livro ,a que dera o título de Malos Pensamientos (1991). Mas só após regressar definitivamente à terra dos seus pais é que daria livre curso a esta vocação.

Faciolince é um Autor que está conotado com a fase posterior ao realismo mágico de cujo expoente máximo constam autores sul-americanos (e não só) como Gabriel García Márquez e Jorge Amado, indo mais ao encontro da escrita de Santiago Gamboa e Laura Restrepo. Faciolince é u escritor multifacetado que reparte a construção do seu discurso por vários géneros literários e de temática muito diversificada.

A obra Malos Pensamientos, (1991) é vista pelos conhecedores da obra de Joyce como um hipertexto de The Dubliners do Autor irlandês, com as decidas adaptações à realidade da sociedade colombiana. Trata-se de uma compilação de pequenas histórias sobre o quotidiano e do viver colombiano nos anos oitenta. Já Assuntos de un Hidalgo Dissoluto (1996) é inspirado em duas figuras-chave da literatura do século XVIII: Tristam Shandy de Lawrence Sterne e no Candide de Voltaire. O narrador e protagonista do romance é um ancião de 71 anos cuja voz ressuscita o tom picaresco da literatura espanhola daquele período, tratando-se de um milionário que faz uma retrospectiva de toda uma vida debochada, chamando a atenção para a diferença entre o que gostaria que na realidade tivesse acontecido e o rumo que tomou na verdade a sua vida, o que se traduziu num romance de época bastante aclamado pela crítica.

Héctor Abad Faciolince escreveu também Tratado de Culinaria para Mujeres Tristes (data), já comentado neste blogue, sendo a versão portuguesa brindada com o infeliz título de Receitas de Amor para Mulheres Tristes. Este é normalmente olhado pelos críticos como um livro de género “incerto”, por adicionar a um conjunto de falsas receitas que parece à primeira vista assumir a forma de um breviário de mezinhas e feitiços, retirados do património oral e imaterial colombiano, com receitas verdadeiras, quase todas com efeito mais placebo que medicinal, mas cuja leitura cura só por si a tristeza, dado o efeito hilariante do humor negro, às vezes burlesco, que salta das entrelinhas. Dizem-no de género “incerto” por não se enquadrar nos géneros de romance, contos, relatos ou narrativas e muito menos de um livro de receitas, antes num conjunto de hilariantes reflexões a infelicidade.

Fragmentos de Amor Furtivo (1998), outra obra do Autor, vai beber a inspiração nos contos das Mil e uma Noites já que todas as noites, ao deitar, uma mulher convence o amante a adiar a partida, contando-lhe episódios dos seus amores passados. Faciolince acaba por traçar, assim, de uma forma poética, os retrato da classe média colombiana dos anos 1990, em Medellín, uma cidade então controlada pela pestilência (biológica e social) e pelo desencanto em que a população se vê mergulhada, tiranizada pelos cartéis do narcotráfico na, então, mais violenta cidade do mundo,. Uma violência que acaba por enterrar vivos os seus habitantes. À semelhança do que acontece em Decameron de Bocaccio, o casal protagonista isola-se da “pestilência” (aqui com o sentido a que lhe dá Albert Camus, a desumanização) da sociedade, dedicando-se a contar um ao outro histórias que os possam resgatar da morte.

Basura (2000) foi publicado em português com o título Os Dias de Davanzatti é o livro mais experimentalista do Autor, onde o narrador alude constantemente a estereótipos ou então a escritores universalmente consagrados para falar de um escritor amador que é o protagonista do romance, Bernardo Davanzatti, o qual atira sistematicamente tudo o que escreve para o cesto dos papéis. O que o seu diligente vizinho, o locutor da narrativa se dispõe a, diligentemente e cuidadosamente, todos os dias, a ir buscar ao lixo, tornando-se o seu único leitor. Trata-se de um livro dedicado unicamente ao acto da escrita e ao papel do leitor na interpretação da obra escrita, ou seja, àquilo que é na verdade a única coisa que dá sentido ao acto de escrever, conferindo vida ao livro muito para além da “mão” que o escreve.

Depois dá à luz as Palabras Sueltas (2002) onde mistura a escrita ensaística com uma colecção pessoal de pensamentos e aforismos.

Héctor Abad Faciolince escreveu também um livro de crónicas das suas viagens pelo Egipto, também no ano de 2002, onde o narrador oscila entre duas versões da realidade quotidiana numa mega cidade que se empenha em trazer para a luz do dia a memória de outras realidades, imagens e episódios passados no outro hemisfério, em Medellín. O livro intitula-se Oriente, desde el Cairo e pode ser lido em complemento com Tahrir, de Alexandra Lucas Coelho que fala da mesma cidade, dez anos mais tarde, em plena Primavera Árabe.

Noutro livro de viagens publicado dois anos mais tarde, intitulado Angola 2004, a voz do narrador traz-nos o eco do hiper-realismo, ultrapassando o Autor, definitivamente, a questão da influência do realismo mágico. Aqui, estamos mais uma vez, tal como em Fragmentos de amor furtivo perante uma alegoria por comparação com a sociedade colombiana. Nesta obra, Faciolince descreve uma cidade cuja população se divide em três castas, em tudo semelhante ao regime do apartheid, mas reproduzindo a violência que se faz sentir na Colômbia, nos anos de transição para o século XXI.

Todos estes livros serão, a seu tempo, comentados neste blogue.

Somos os esquecimento que seremos

E assim chegamos a 2006, altura em que Héctor Abad Faciolince publica o romance autobiográfico e de tom memorialista que dá o título a este post, El olvido que seremos, em português, Somos o esquecimento que seremos. O livro foi escrito em homenagem ao pai, assassinado vinte anos antes, pelas milícias paramilitares.

Nesta obra, o desenvolvimento da narrativa centra-se no olhar e na visão do mundo do narrador que é filho da personagem principal. Estamos, portanto, diante de um caso de autodiegese em que o narrador, sendo também ele uma personagem da trama, se coloca na posição de observador para proporcionar aos seus leitores/ouvintes uma perspectiva panorâmica e diacrónica dos acontecimentos. É, também, notória a construção discursiva, elaborada propositadamente de forma assegurar ao leitor não se ter o locutor sujeitado a nenhum constrangimento em termos de liberdade de expressão salvo num único caso, em que dá a entender não revelar o conteúdo de uma gaveta com o objectivo de preservar a memória do pai, fazendo-o apenas por estar certo de que os factos omissos não terem tido expressão na sua vida pública e assim salvaguardar a sua intimidade. Da mesma forma, o Autor propõe-se contar a história da família Abad Faciolince, enquadrada no contexto sócio-político da Colômbia, ao salientar as históricas e culturais práticas de abuso de poder por parte de uma classe dirigente despótica, mediante uma mentalidade modelada na têmpera do colonialismo. Trata-se de uma narrativa de género confessional, em cujas entrelinhas está contida uma profunda ironia a que se liga um forte sentido crítico e simultaneamente uma total honestidade em relação às próprias motivações e sentimentos ao longo da diegese, ao expor alguns aspectos das suas memórias que qualquer outro autor poderia ter camuflado. É aqui realçada logo a partir das primeiras linhas, a importância das mulheres na família de Faciolince, provavelmente uma das poucas características que o aproximam do também escritor colombiano Gabriel García Márquez: as cinco irmãs, a mãe, as empregadas da casa e demais parentes femininas, ao todo dez mulheres que faziam então parte do agregado, uma família alargada em cuja casa conviviam várias gerações, a par de um afecto pungente tal a intensidade, dirigido a pai.

Também é colocada em evidência como factor favorável no crescimento e desenvolvimento dos filhos do casal a complementaridade de feitios (apesar de diametralmente opostos) entre os pais, descrita com o humor de quem está habituado a ver as diferenças de personalidade como indispensáveis. A mãe de Faciolince, esposa do Doutor Abad, médico e professor, é uma senhora de espírito racional e pragmático, gestora de condomínios. O pai é mostrado como um profissional de brio extremo, consciente da sua missão como formador de uma geração de novos médicos e ciente do dever modificar culturalmente a forma de olhar para a medicina: a prevenção das doenças infecto-contagiosas, e sobretudo a chamada de atenção para a missão do Estado, em efectuar o tratamento das águas municipais. O Autor mostra o pai, o Doutor Abad como um homem superior, um sonhador que dedica a vida, à custa da própria vida, pela causa da saúde pública, fazendo do tratamento da água potável que abastece os lares colombianos o seu baluarte no tocante à medicina preventiva, a par da vacinação universal, as suas duas grandes cruzadas.

No entanto, pelo retrato que é dele tecido ao longo do romance, a dedicação a causas públicas ocupa a quase totalidade do seu tempo, tendo de delegar na esposa as questões práticas do quotidiano, já que se trata de um homem que, por vezes, se esquece de si para ajudar os seus alunos, até mesmo financeiramente.

O Doutor Abad, apesar de nunca ter estado ligado a nenhum partido político, teve um posicionamento ideológico que o tornava num alvo particularmente apetecível para a ala mais reaccionária da elite na Colômbia dos anos oitenta, moldada por séculos de mentalidade colonialista da classe dirigente, a qual pretende fazer da medicina um negócio lucrativo e ao mesmo tempo, tornar o seu exercício uma forma de exercer o Poder e um privilégio a ser usufruído por aqueles que o podem pagar a peso de ouro. Segundo o Autor é desta classe dirigente que emanou nos anos oitenta do século vinte o financiamento das milícias paramilitares.
Assim, o que temos neste livro, por detrás do tom memorialista e autobiográfico é um livro que trata do fenómeno da circulação das elites num país sul-americano no último quartel do século vinte, à semelhança do que acontece com O Leopardo de Giuseppe Tommasi di Lampedusa em Itália.

Somos o esquecimento que seremos é um livro que demorou mais de vinte anos a amadurecer para criar o distanciamento de acontecimentos cuja excessiva emotividade poderia prejudicar a escrita e a transmissão da mensagem. O livro foi, assim, cuidadosa e pacientemente depurado na sua simplicidade estilística, expurgado de todo e qualquer sentimentalismo fácil. O tom é evocativo, trazendo ao presente episódios da vida famíliar que vão surgindo uns encadeados nos outros, como as cerejas.

Faciolince traça ainda o retrato de uma Colômbia essencialmente agrícola durante os três primeiros quartos de século, um pouco como Portugal até 1974. Um país essencialmente rural, mas que ao contrário sucedido em terras lusas, emerge da pobreza após uma sangrenta luta de classes (em Portugal isto acontece com o fim da colonização e da Ditadura do Estado Novo), luta essa que assenta em ideologias antagónicas, representadas por dois tipos de elites: as que acreditam que para existir progresso, tem de se garantir condições de vida digna à população e aquelas que são um misto de inspiração colonialista, deslumbradas pela pujança da locomotiva económico-financeira norte-americana, assentes na doutrina calvinista de que o usufruto dos bens são para aqueles que os podem pagar, usando as assimetrias socio-económicas para melhor controlar as massas e exercer poder. A oposição entre estas duas formas de ver o mundo degenera, numa primeira fase, e descontentamento e, mais tarde em sangue e morte, sendo o Doutor Abad, Defensor do Direitos Humanos e membros de várias ONG's apenas uma das milhares de vítimas que caem perante o triunfo do ódio.

O título do romance é apenas o primeiro verso de um soneto de Jorge Luís Borges o poeta cego argentino, cujo poema adquire uma dimensão épica com este romance, o qual expõe as fragilidades e ataques a que está constantemente sujeito um regime democrático (ver aqui http://itinerariopoetico.escribirte.com.ar/10215/el-olvido-que-seremos.htm).

No tocante à construção da identidade sexual e posicionamento socio-político da voz do narrador é também nítida a influência do pai e da ideologia do racionalismo iluminista e do Humanismo dos filósofos do século das Luzes. Por outro lado, o Auto empenha-se em esmiuçar papel do controlo da Igreja que entra no lar através da figura materna e se reflecte na forma como algumas das irmãs conduzem a própria vida, desde o grau de autonomia e autoconfiança, até à forma de se vestir ou exprimir-se em público. Este aspecto está particularmente vincado em alguns textos de Tratado de culinária para mujeres tristes ou Receitas de amor para mulheres tristes (ver aqui http://hasempreumlivro.blogspot.pt/2013/01/receitas-de-amor-para-mulheres-tristes.html) que, segundo o Autor se está directamente relacionado com o grau de conformismo da população local.

Sobressai ainda o paroxismo da dor em dois momentos narrativos, desencadeados pala fatalidade. É, também, por essa razão, um livro catártico, que fala de amor e morte, das diversas formas de amar, independentemente dos condicionamentos impostos pela cultura. Um livro cuja escrita implica um longo processo de cura, face a feridas que ainda assim permanecem em carne viva, embora já não sangrem.

Somos o esquecimento que seremos é uma história que expõe o choque da perda da inocência, em detrimento da dolorosa aquisição da lucidez.



Cláudia de Sousa Dias

21.11.2012-14.08.2013

2 Comments:

Blogger M. said...

Um livro que amadurece durante 20 anos só pode estar no ponto!
Que bem escreves estas resenhas!
Beijinhos ;)

5:39 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada!

7:35 PM  

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