HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, March 29, 2012

“A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket” de Edgar Allan Poe (Assírio & Alvim)








Tradução de Jorge Pereirinha Pires





Sendo filho de actores e tendo ficado órfão muito cedo, Edgar Allan Poe foi adoptado por um casal com quem tinha laços de sangue. No entanto, a forte inclinação demonstrada pelas letras não era propriamente sedutora para um pai adoptivo, que idealizava para o filho uma carreira tradicional ligada às forças armadas.
O clima de conflito, motivado pelas dissidências com a família, impeliram Poe a usar a escrita para sobreviver, uma necessidade de onde nasceria a presente obra, que reunia a projecção da vida interior e a imaginação do Autor. Imaginação e criatividade essas que foram adaptadas ao desejo de agradar ao grande público, fazendo-se publicar, periodicamente, na revista “Southern Literary Messenger”.


A trama de A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket consiste numa viagem mítica ou imaginária ao Pólo Sul, numa altura em que a Antárctida era um continente do qual se sabia muito pouco.
A vivência do protagonista do romance, junto de uma comunidade situada numa zona remota daquele gélido continente, faz lembrar um pouco a ilha perdida de Camões no Canto IX de Os Lusíadas, pelas características ligadas ao sonho e ao imaginário, como veremos mais adiante.
As inúmeras intertextualidades contidas na obra abrem-nos caminhos quase infinitos no que respeita à interpretação e ao imaginário dos leitores de Poe no século XIX e décadas seguintes. As afinidades literárias deste texto encontram-se reflectidas, por exemplo, em Jules Verne, em alguns dos seus romances de aventuras e, particularmente, no conto “A Esfinge de Gelo”. Ambos, aliás, são precursores do género a que hoje se chama de “ficção científica”.
O progresso nos vários domínios da Ciência, ocorrido na época em que o romance foi publicado e nos anos que se lhe seguiram, permite avaliar, em primeiro lugar, o elevado grau de conhecimento de vanguarda para a época, demonstrado pelo Autor, no que respeita ao conhecimento de técnicas de navegação. O preciosismo e rigor impressos na linguagem, na gíria normalmente utilizada a bordo de um navio de longo curso, a par do detalhado conhecimento geográfico e técnicas de navegação, é verdadeiramente notável, conferindo à obra um toque de realismo nos capítulos que relatam as condições em que se processa a viagem e a rotina a bordo.

A intertextualidade com Hermann Melville está patente na descrição do contacto com a tribo perdida na Antárctida, lembrando a adversidade da geografia e do clima com que se debate o protagonista de “Taipi”, assim como o romance náutico “Moby Dick”. Para muitos as influências literárias desta obra manifestam-se ainda em em Coleridge, que numa das suas obras fala, também, numa comunidade supostamente a residir no Pólo Sul que se pode observar no conto “A Descida ao Maëstrom”, e a Daniel Defoe em “Robinson Crusoe”. E, mais tarde,  em H.P. Lovecraft que recupera a presente obra para o conto “Nas Montanhas da Loucura” .

Allan Poe, além de projectar a vivência pessoal no imaginário e no discurso do protagonista, transmite-nos, também, através do olhar deste, o progresso do conhecimento científico da época, particularmente na área da química e da engenharia, sobretudo com a descoberta da electricidade, colorido pelo imaginário popular recheado de mitos e superstições.

A existência da Antárctida só tinha sido constatada em 1820, pouco mais de dez anos antes da publicação deste livro. Este (des)conhecimento incluía tanto  os contornos geográficos como a fauna, a flora, os pormenores das condições climáticas, em todo o território do referido continente, assim como o grau de desenvolvimento das populações que, supostamente, ali viveriam.


Trata-se de uma estória Atlântica que se assemelha um pouco à busca da mítica Atlântida.
Na edição portuguesa, a adaptação do vocabulário usado na marinha foi retirado do glossário da obra  “Como se fala a bordo” de Francisco Penteado (1912).
 Para o tradutor, trata-se de um livro “misterioso”, “inconclusivo”, “que aparenta estar inacabado na medida em que se sai dele ainda com mais incógnitas do que quando se entrou”, sendo essa mesma característica uma das grandes mais-valias da obra. Um aspecto curioso são as referências ao Brasil e a Cabo Verde, aos vinhos do Porto e da Madeira durante o trajecto da atribulada viagem.


Estilo e Personagens

O estilo utilizado pelo narrador é, predominantemente, narrativo, assemelhando-se à escrita de um diário de bordo, com a vantagem de colocar o leitor a dentro do quotidiano da tripulação de um navio de longo curso e, simultaneamente, dar-lhes a visão particular do protagonista que acumula a função de narrador participante, emitindo juízos de valor e morais.

Este narrador, Arthur Gordon Pym, é um jovem estudante que, juntamente com um colega e companheiro de quarto, decide embarcar num navio, rumo ao Sul, em busca de aventuras, após afastar o tédio da rotina das aulas com uma bebedeira. Escondido no porão do navio, depara-se, então, com um conjunto de dificuldades logísticas que não havia previsto.
À alegria proporcionada pelo encontro inesperado com um “amigo” canino segue-se o terror, quando se apercebe de um súbito ataque de loucura ou raiva do mesmo, no meio da fome, da sede e da escuridão. Sem saber que no convés está a decorrer um motim que transforma o navio num mar de sangue, onde a carnificina atinge um paroxismo quase que infernal, Arthur suspeita que algo de horrível se passa na parte superior do navio, mas não consegue ler a mensagem do colega.
O naufrágio sofrido, mais tarde, pelo navio onde viajam, obriga-os a mudarem-se para uma jangada onde aumentam, ainda mais, as dificuldades. A passagem de um navio fantasma, onde tripulação e passageiros apodrecem dizimados pela peste, acentua-lhes o desespero, dando-se neste momento da narrativa mais um surto de loucura temporária entre os náufragos, onde um breve episódio de canibalismo ilustra o desespero e a incerteza face ao futuro, inibindo os tabus socialmente instituídos e passando a imperar uma ética utilizada em situações limite, norteada pela lei da sobrevivência do mais forte ou mais apto. Este trecho permite colocar em evidência a importância das ideias do darwinismo social, que começavam a ganhar impacto na época em que a obra foi escrita.
Com a recolha dos náufragos e o embarque num navio rumo ao Pólo Sul, o rumo da história inflecte, passando a descrever a viagem com um itinerário definido e percorrendo várias fases: uma objectiva e realista, baseada na cartografia da época, e outra imaginária, a partir do paralelo 84º sul. Este seria o ponto mais longínquo, explorado até à data da publicação da obra. Ao atingir o Oceano Glacial Antárctico, a tripulação encontra dificuldades acrescidas pelo gelo, que impede um abastecimento eficaz, ao que se soma a ameaça do escorbuto.
A passagem do paralelo 84º sul marca a entrada num território desconhecido no qual o autor constrói uma estória ou narrativa secundária, envolvendo uns poucos exploradores aventureiros que dão de caras com um micro-clima quase tropical, onde habita uma comunidade de aborígenes.
 A partir daqui, o autor constrói uma alegoria onde estão presentes o choque de culturas e civilizações, traduzido numa luta pelo poder marcada pelo etnocentrismo, aludindo ao domínio colonial a partir da Europa. Ali, os sobreviventes do primeiro navio deambulam por um labirinto subterrâneo no sentido de escaparem à dizimação feita pela comunidade autóctone.
O Autor introduz, também, uma estranha fauna mítica-imaginária que delicia o imaginário dos leitores, como o urso gigantesco, maior do que o do Árctico, uma estranha doninha ou musaranho da cor da neve, “com o pêlo cor de gelo de um branco sedoso”, dentes e garras escarlates.
Os habitantes locais caracterizam-se por “mulheres tímidas mas solícitas” e por homens desconfiados, com medo dos forasteiros, que acabam por tornar-se agressivos, sugerindo um conflito, muito darwinista, pela posse das fêmeas, onde a animalidade se sobrepõe à sociabilidade.
A ameaça da fome e o medo de um ataque canibal, por parte dos dois aventureiros que restaram da tripulação inicial, acabam por precipitar a fuga do local.
Ao longo da narrativa, praticamente todos os companheiros do naufrágio do primeiro navio vão morrendo  de forma atroz, sobrando apenas dois e sendo um deles o narrador, Arthur, e Peters, o outro, que recolhe os apontamentos do companheiro para publicação.
A fuga para sul, o ponto para onde todas as águas parecem convergir, parece-se com um inferno branco onde o gelo e o calor se (con)fundem, proporcionando um final onde está presente um onirismo  delirante, febril – inspiração vinda , talvez, do láudano, do qual Poe era dependente -  um inferno de gelo escaldante sobrevoados pelos Tekeli-li, os sinistros pássaros cor de gelo, temidos pelos locais e que parecem ser os guardiões das portas do inferno. Ou do paraíso, estando, de uma forma ou de outra, conotados com a morte.
As portas para o centro da terra (ou para o céu) parecem ali estar recobertas por uma descomunal camada de gelo até então nunca vista, sob a qual se regista intensa actividade vulcânica, numa zona assolada por uma chuva de cinzas esbranquiçadas (semelhantes às de um forno crematório?)

O avistar, pelo protagonista, de uma gigantesca figura amortalhada marca o sucumbir deste à loucura e ao delírio, perdendo-se no inferno (ou paraíso) branco. A sobrevivência do companheiro Peters serve de justificação para a preservação do caderno de apontamentos de Arthur, que Peters decide publicar e, desta forma, explicar o início da trama. Esta, do ponto de vista da estória de Arthur Gordon Pym será uma narrativa aberta, mas circular, do ponto de vista global da narrativa, por englobar o período após o desaparecimento do protagonista.

O final da estória deixa muitos aspectos por explicar…remetendo para as epopeias clássicas, com viagens marítimas recheadas monstros, perigos e peripécias.

Um marco importantíssimo na História da Literatura de ficção científica.

Cláudia de Sousa Dias


Publicado originalmente no site orgialiteraria em Julho de 2009.

3 Comments:

Blogger M. said...

Gosto muito de Allan Poe, daquela tensão sempre patente na escrita.
Beijinhos, bom weekend!
Madalena

7:03 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

É mesmo!

Dá uma adrenalina...


CSD

3:23 AM  
Blogger Unknown said...

Recomendo a leitura de A Esfinge dos Gelos, de julio Verne, que é uma espécie de continuação das aventuras de Pym.

3:26 PM  

Post a Comment

<< Home