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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, December 30, 2011

“O Amor chegou com as Chuvas” de Mirabai (Assírio & Alvim)





Tradução de Jorge Sousa Braga

Nascida no século XV na província do Rajasthan, no seio de uma família Kshátryia - a casta dos nobres e guerreiros hindus - a jovem Mira demonstrou, desde cedo, uma forte devoção ao deus Krishna, cujo culto nunca foi visto com bons olhos pela família do marido, a qual privilegiava o culto a outras divindades.
Após a morte do marido, Mira dedica-se de alma e coração ao culto do deus que identifica com o arquétipo de amante ideal.
Mirabai compõe então poesia erótico-sacra, canções espirituais, breves e rimadas - as padavali - onde celebra a união erótica e mística com a divindade, a qual aparece mencionada, nas suas composições, com os diversos cognomes que lhe são, frequentemente associados e representam, cada qual, uma faceta ou atributo de Krishna: Shyam ou Azul, cor associada ao deus por simbolizar a beleza e a espiritualidade; Mohan que significa encantador; Bihari, epíteto que significa "alegre" ou que gosta de se divertir; Hari, a incarnação de Vishnuy para designar "aquele que lava os pecados" e Giridhari ou "aquele que move montanhas".
Um dos símbolos mais utilizados para representar a beleza de Krishna nos poemas de Mira são as penas de pavão que ornamentam a coroa do deus.
Mirabai ou simplesmente Mira, após enviuvar, dedica-se a encenar os rituais e cerimónias de adoração ao deus, não só compondo as canções que serão entoadas no templo, mas cantando-as ela própria e dançando durante os rituais ao som das próprias padavali que compôs.
Este comportamento, tido como inadequado para uma nobre viúva na época, desencadeou a perseguição à jovem por parte dos membros da família do falecido marido, que se traduziram em várias tentativas de envenenamento, mencionadas na obra, devido a esta conduta tida como escandalosa: as viúvas, na Índia, são ainda hoje consideradas um fardo para a família do marido, ocupando, por isso, uma posição marginal na sociedade hindu.
Mira expressa na sua poesia a ânsia desesperada de se agarrar à vida através da entrega a um amor absoluto, personificado numa figura masculina que representa o modelo perfeito do Amante construindo nas suas canções a união mística com a divindade, num ritual hierogâmico - casamento/acasalamento sagrado - de que são exemplos trechos seguintes:

(pp 14) 

O Senhor de Mira
É Hari, o Indestrutível
Por ele sacrificaria tudo.


Ou

(pp 15) 

Amigas, Shyam sorri
e os seus olhos brilham
quando se encontram
com os meus
As sobrancelhas são o arco
e os olhares furtivos as setas
com que me trespassa o coração
sucumbi ao contemplar a tua
beleza  Toda a minha família
tenta em vão dissuadir-me

(pp 16)

(…) O meu coração está ébrio
de Shyam…

Na poesia de Mira podemos encontrar, ao examinarmos as suas canções com atenção, alguma ambiguidade no que toca à significação ou polissemia: o amante, seja ele na forma Shyam, Hari, Bihari, Mohan ou Giridhari pode realmente situar-se no plano do supra-sensível, mas por vezes temos dúvidas. Ao lermos alguns poemas deparamo-nos, por vezes, com a sensação premente de que o objecto de desejo, que leva a poeta a cantar de forma tão pungente a ausência, se trata na realidade de um amante carnal, talvez um yogi a quem chega a mencionar num dos poemas, provavelmente protagonista de um ritual simbólico onde tivesse representado o papel do deus contracenando com a poeta, dançarina e sacerdotisa, num ritual hierogâmico.

Assim sendo, Mira poderia ter feito parte integrante de um ritual de acasalamento com o "deus". Mas ao ceder o lugar a outras bailarinas e sacerdotisas que teriam, tal como ela, de prestar honras a Krishna, passa a sentir a rejeição, o abandono e a perda que passam a dominar-lhe o pensamento. Este sucedâneo do deus não poderia vir nunca a pertencer-lhe uma vez que, ao ter que representar o papel da divindade, este nunca poderá pertencer a uma única mulher, pois o deus pertence a todas as mulheres servindo a toda a humanidade.
Senão, vejamos os poemas que se seguem:

(pp 21) 

Só sei dançar
para o meu Mestre
despi-me de toda
a vergonha…

(pp 25) 

Quem recusaria uma taça
de néctar para beber água
salobra? O Senhor de Mira
satisfaz os seus desejos

(pp 27) 

Irmã o Senhor dos Pobres
uniu-se comigo num sonho
uma multidão de deuses
formava o cortejo nupcial

(pp 28 ) 

Como pode alguém rejeitar Shyam?
Ninguém bebe
água dos charcos nos meses
da chuva  A água de Hari
transborda Não há água melhor
para a minha sede
(...)
A dor de Mira vem
da separação O que ele
quiser que ela faça
ele fá-lo-á

Mira chega a um ponto em que parece convencer-se de que só conseguirá a absoluta união com o deus propriamente dito, noutro plano existencial, após cumprir todo o karma na altura em que já não será necessário reencarnar, como podemos constatar na pp 29

Este mundo é uma sebe
de roseiras-bravas e a estrada
para o amado está cortada
Mira chegará a ele
cantando as suas glórias
A suposta incorporação do deus num corpo humano, que actua como se fosse a própria divindade, parece confirmar-se na pp 35, onde é referida a presença de um yogi a representar o deus:

Amar um yogi é como amar
o infortúnio Murmura
palavras doces quando
estás com ele Depois
esquece-te e parte
como qual colhe e rejeita
um rebento de jasmim
(…) Hari traz-me
de volta a tua beleza Sem
te ver eu não consigo ver

Nas pps 36 e 37 a poeta torna-se ainda mais explícita:

(pp 36) 

Depois de teres ateado o fogo
do amor para onde foste
Shyam? Depois de teres
lançado a barca do amor
no oceano do desejo
abandonaste a tua fiel
companheira na rebentação (…)

(pp 37) 

Estou louca de amor
E ninguém se apercebe
como posso dormir
se o meu amado dorme
com outra

E
(pp 38)
Mira
foi mordida pela serpente
da ausência

A chuva aparece como instrumento de Hari Krishna como sinal de que o fogo do desejo foi aplacado para dar lugar à suavidade e à constância do amor.
Relativamente às críticas dirigidas pela família em relação à sua postura em recusar-se a ser uma viúva conformada e remetida para o anonimato  confinada à clausura do lar, Mira reage dando largas ao seu temperamento insubmisso, no poema da página 49

(...) os idiotas instalaram-se
no trono enquanto os sábios
mendigam de porta em porta

(...) 

o rei persegue
Os amantes de Deus

Mira associa ainda o fogo do amor ao sofrimento por supor que a felicidade extrema implica o seu simétrico - o extremo desespero – expressa no belíssimo poema da pp 50, “Amiga não me fales de amor”. Apenas as chuvas da monção conseguem aplacar o fogo do desejo (vide pp 51) no poema
“O amor chegou com as chuvas”


Passa então a dominar uma emoção mais persistente e invasora que se insinua, insidiosa, e que se espalha por todos os recantos da vida como a água da chuva: o amor. A chuva que desencadeia a alegre dança nupcial dos pavões: a ave de Krishna.
A impossibilidade de desposar o amante ideal, seja ele o sacerdote que do corpo do deus quer o próprio Krishna, tê-la-á levado, muito possivelmente, à procura da união mística com o deus que só conseguirá plenamente após a morte.

Mirabai é assim uma pequena antologia de uma Autora cuja poesia é recheada de imagens de uma beleza pungente e o retrato de uma mulher com uma coragem invulgar na livre expressão de emoções em ambiente social hostil, onde às mulheres está normalmente reservado o anonimato.


Cláudia de Sousa Dias

(revisão a cargo de Gonçalo Mira e publicado originalmente no site orgialiteraria.com, no dia 24 de abril de 2009)

Wednesday, December 21, 2011

“A Casa da Romãzeira” de Manuela Monteiro


A Casa da Romãzeira da escritora infanto-juvenil Manuela Monteiro foi lançada no dia 25 de Abril de 2009, na Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco. A apresentação da obra a cargo de Artur Sá da Costa, em substituição do malogrado professor Vasco Moreira

O evento contou,  ainda, com a leitura de trechos da obra por Vitória Triães e Fátima Almeida, uma breve mas sublime sessão de declamação de poemas de Abril, as canções de Ivo Machado, acompanhado por um dueto de Guitarras.


A Obra

A Casa da Romãzeira” é um livro que se salienta quer pela beleza estilística quer pela temática abordada de forma polissémica, cujos múltiplos significados nos espreitam nas entrelinhas. Esta mesma polissemia coloca a escrita infanto-juvenil de Manuela Monteiro ao lado da dos contos infantis de Wilde ou de Saint-Éxupery, que vão ao encontro do lado infantil, pela via afectiva, do público adulto. Sobretudo este livro em particular, porque se insere nas comemorações do 25 de Abril em Portugal com a finalidade de explicar às gerações mais jovens os factores motivacionais que estiveram na origem da Revolução dos Cravos.

As ilustrações são da autoria de José Emídio e reflectem a coloração da plumagem do chapim real, as quais Manuela Monteiro associa ao mês de Abril – “o mês azul e oiro”. De realçar a correspondência entre o desenho e os textos da autora, conseguindo, inclusive, ilustrar os poemas seleccionados por Manuela Monteiro dos Poetas de Abril, como Sophia de Mello Breyner Andresen, Manuel Alegre, Padre Fanhais, entre outros…

A estória passa-se na Casa da Romãzeira, um lugar “onde é sempre Abril”. É uma casa escondida num jardim em que a profusão da fauna e da flora lembra o paraíso genesíaco onde se esconde a árvore da Vida ou do Conhecimento, personificada na Romãzeira. O jardim envolve a casa que encerra em si um segredo. Um segredo que é guardado pelas sucessivas gerações de Joaninhas que guardam a memória do tempo e da mudança.

Também a presença de outra árvore – a oliveira, de que não se sabe a idade – representa não só a paz, mas também a permanência de um património histórico que é necessário preservar.

O outro elemento que se destaca nesta história é a nota de realismo mágico que vem colorir o texto, estimulando a imaginação através do diálogo entre as duas “joaninhas”: a Joaninha-que-voa e a Joaninha-Menina, neta do patriarca da casa da Romãzeira.

O período de transição para a adolescência da Joaninha Menina assinala a mudança necessária que a torna capaz de ser portadora do segredo da Casa da Romãzeira - cuja transmissão é levada a cabo pela Joaninha-que-Voa, exactamente no dia do 15º aniversário da Joaninha-Menina. Esta revelação é introduzida pelo diálogo que se segue e consiste no ponto culminante da narrativa:

Estás diferente, Joaninha-que-voa. É como se uma nocturna asa tivesse pousado sobre ti e te cobrisse de sombra.

Neste momento, a Menina apercebe-se da tensão da amiga, que está prestes a revelar-lhe algo de muita importância:

E tu estás resplandecente, Joaninha-Menina. É como se houvesse dentro de ti um sol que te invadisse de luz.

É então que a Joaninha-que-voa revela o segredo da Casa da Romãzeira relacionado com a Revolução e o passado da Avó da Joaninha Menina…

Com este livro, a autora pretende não apenas mostrar o que está subjacente à revolução de Abril, mas sobretudo dar a conhecer a mudança efectuada no quotidiano das pessoas, para além de homenagear os poetas que tentaram mudar a direcção do vento ideológico. É sobretudo um livro que visa exaltar os poetas como guardiões da memória de um povo, da mesma forma que a Joaninha-que-voa é a guardiã da memória da casa da romãzeira e dos nela lá viveram:

Os poetas são os feiticeiros das palavras. Num só verso põem a alma inteira. Num só poema, toda a beleza do mundo.


E a maior feiticeira e guardiã das palavras é, sem dúvida, Manuela Monteiro.


Cláudia de Sousa Dias

PS: Este texto foi originalmente publicado em Maio de 2009 na revista literária on-line Orgialiteraria, e editado por Gonçalo Mira

Tuesday, December 13, 2011

“O Livro do Sapateiro” de Pedro Tamen (Dom Quixote)




Com este volume de poemas, o poeta e tradutor Pedro Tamen conquistou o Prémio Correntes d’Escritas 2011, um evento que tem por tradição reunir escritores de língua luso-castelhana e ao qual está associado um concurso literário.
Tendo como inspiração o sonho contemplativo do poeta argentino Jorge Luís Borges, Pedro Tamen glorifica, neste seu conjunto de poemas, uma belíssima paisagem Outonal, com reminiscências primaveris, marcada pelo ritmo dos gestos diários do homem que trabalha incansavelmente na oficina de sapateiro. Trata-se da exaltação de um labor onde, ao mesmo tempo, é dissecado o trabalho artesanal e incansável numa profissão que está para além do tempo: o sapateiro é uma figura que ultrapassa o presente e as mudanças no mercado de trabalho, tratando-se de uma profissão que, embora rara, se mantém, mesmo em tempos de crise económica, constituindo um nicho de mercado muito específico.
Mas, para além de se revestir de um carácter apaixonante para os sociólogos do trabalho, a profissão de sapateiro adquire, com Pedro Tamen, uma conotação poética, a partir do momento em que a aparente efemeridade de uma profissão que parecia, à partida, ameaçada pelo progresso tecnológico e pelo poderoso braço de ferro entre os diferentes agentes económicos, persiste orgulhosamente como o pinheiro solitário na encosta de uma montanha.
O sapateiro de Pedro Tamen é também ele poeta porque, ao executar pacientemente o seu labor, empregando os gestos de todos os dias, contempla, ao mesmo tempo o efémero e o intemporal: a passagem das estações em todo o seu esplendor; a beleza das mulheres e as marcas do tempo nos seus rostos, através do vidro da janela da oficina onde trabalha. As cores da paisagem vão-se alterando subtilmente, esculpindo o humor, e trazem à luz da memória as reminiscências, despoletadas pelas sensações visuais.
Assim, o amarelo das giestas adquire nas palavras do sapateiro poeta, criado por Pedro Tamen a tonalidade quente e vivificante da luz solar do Estio, a afugentar o ânimo cinzento e as cores sombrias da oficina, sempre que lhe entra pela vidraça:

Iremos procurar a razão da giesta
(…)
E os olhos tomarão todas as cores
As cores de tudo.
(Poema 1)
O tempo interage também no trabalho, ao interferir na destreza da mão que o executa. Uma mão gasta, com a pele curtida pelo trabalho contínuo, que se lança com “garra” à vida, na luta pelo pão de cada dia. A mesma mão começa, no entanto a acusar os sinais do tempo.
ordeu a vida a pele da minha mão direita
(poema 2)

A simbologia do verde, também muito presente na obra, está ligada à frescura e à consciência do vigor perdido da juventude, numa paisagem primaveril, onde tudo nasce e cresce e todo um mundo de possibilidades que se desdobra pertence, já, ao passado. Essa mesma frescura vigorosa está presa na memória que funde passado e presente e se projecta no futuro (Poema 4).
O trabalho do sapateiro é duro, incessante. Transforma a existência num continuum de renúncia ao prazer do sol, o qual chama o sapateiro, do lado de lá da janela. A cola, usada nos sapatos, adquire então, o odor avinagrado da amargura de uma existência de sacrifício permanente. A renúncia à vida, para obter o sustento. Uma vida áspera, ocasionalmente suavizada por um estímulo vindo do exterior: o acorde de um violino cigano (poema 10) ou um perfume de mulher (ou mesmo o de algumas clientes que lhe chegam a entrar na loja). Mas é no poema 13, onde através da mesma janela de todos os dias, que vê a vida e o tempo escoar-se como areia por entre os dedos:
13
Por cave deserta
entram hábitos e ruídos
verdes montanhosos, cascata
um rio de água de Verão.

Estou só eu e o martelo
e a minha mão opressa
ou estará não sei que mundo
com a palavra ou sem ela?

E eis-me então adivinho
dos mistérios que atravessam
a janela onde perpassa
a luz que mal me ilumina
e é o sal do meu pão.
E é este último verso que nos faz ver que essa mesma “luz” é, na verdade, uma mulher.
A mão que conserta e a mão que escreve são, respectivamente, o pão do sapateiro e do poeta. Um e outro são constantemente amordaçados pelo trabalho, enquanto a vida, o mar, o sol e a praia exercem sobre um e outro o seu apelo irresistível como o canto das sereias, ao ouvido desprotegido de Ulisses. No entanto, estes Ulisses não estão acorrentados ao mastro de um navio, mas ao próprio trabalho: um, à sovela e outro, à pena:
dentes que mordem livre
da mordaça da cave
onde tenaz martelo.
(Poema 10)

Onde o trabalho é exercido com amor e por amor à vida.
neste perdido reduto
em que as mãos amadurecem
(…)
em que o amor vai curtindo
calado, surdo, tingido…

O sapateiro e o poeta fazem do trabalho uma arte: a de fazer um sapato ou um poema como que faz um filho, com a mesma paixão. A mesma paixão com que um e outro se entregam ao trabalho, obriga-os a olhar o passado, o qual lhes faz por sua vez com que os olhos se lhes reverdeçam, pelo encontro com a memória de um tempo onde reinava a esperança.
A mesma ideia é desenvolvida no poema seguinte, onde a memória é, desta feita, despertada pelo cheiro do couro, a matéria-prima com que trabalha o sapateiro.
que eu te prometo, ó pele
de montes e pastagens
que uma vida desfia...
(poema 21)

Assim como no poema seguinte (Poema 22)
tenho a mão mordida da sovela:
erros de quanto um destino morde um sapateiro
No poema 24, a metáfora torna-se mais ambígua, ao confundir intencionalmente o afagar da pele que tanto pode ser a matéria prima como o corpo amado.
Ardem-lhe as mãos de lhe afagar a pele
(..)
e retorno ao meu trabalho
aplicando as mesmas mãos
onde os pregos doem.

A vida invade, a dada altura, a mente e a mão cansadas para o trabalho
suspendo a mão…
(…)
e o mundo refloresce
com memórias de rios e montanhas
inundando este mar de sal e carne
onde me afogo
para respirar.
Aqueles que usufruem do trabalho do sapateiro passam a ter para ele um valor especial, precioso como jóias valiosíssimas: a bela cliente para quem os sapatos são feitos à medida e cuja imagem permanece mesmo depois de partir. O nome desvanece-se no entanto, soterrado nas areias do tempo, como num romance de Umberto Eco(Poemas 28 e 29).
O poema 30 fala de envelhecimento e morte: o sapateiro poeta pretende morrer a trabalhar, deseja “cair sentado”, prisioneiro da memória do tempo primaveril, “tendo na boca um grão de areia”. O pé, para o qual trabalha, possui um par de olhos que, provavelmente não o reconhecem “nos meus anos roídos pelos ratos”. No mesmo poema (31) mostra o receio de já não conseguir despertar o amor em outrem:
Quando já quase não vejo
quem me poderá ver?
O sapato será usado por alguém (uma princesa, ou a princesa) que veste um longo casaco de veludo azul – a cor do trabalho para ele que, nela, terá a cor pálida ou prateada da madrugada, a atravessar o manto azul da noite, povoada de estrelas.
Um longo casaco de veludo
cobrirá um dia a madrugada azul que fabrico
dia por dia.
A solidão parece ser o Fado, o Destino e o Karma do sapateiro e do poeta, marcado pela canseira dos dias, no poema 35.

A quem deixais o meu cansaço
as unhas sujas, as marcas
do martelo talhado,
a quem, senão a quem…?
Aquela ou aquelas que vêm buscar o resultado do labor do sapateiro, trazem a cor ao cinzentismo dos dias na oficina:
Ao apertar-lhe a mão
(…)
Mistura-se na pele os cheiros dos curtumes
a liberdade elástica do ar
do vento azul das mentes que sempre invejais.

E o sapateiro, recupera no olhar a giesta do Estio.
A alegria e a vitalidade de quem ama a vida que palpita fora da oficina e à qual só chegam alguns vislumbres de cor, são centelhas de vida que, pela imaginação, se transformam em “expplosão lírica” (41)

A pele transfigurada que as minhas mãos modelam
Como que adormecem sonhos torturados
Em que as pastagens verdes irrompem nesta cave
E tudo se ilumina num sol que não está cá.
(poema 45)
A imaginação do poeta solta-se, voa, sobe aos céus em espiral ,como os sons dos sinos de Domingo (45)

E assim se escreve e descreve o “mundo incompleto e certo” do dia a dia de um sapateiro que vive do imaginário e constrói, pintado com as mesmas cores do poeta que parte do ténue fio da realidade que lhe entra pela janela virada para o vento, o seu próprio mar, e o sol amarelo das giestas.
Aqui não tenho relógio
Nem de corda nem de sol
Que sol não há muito nesta cave…
Um trabalho que preenche o vazio das horas e dá corpo a uma incomensurável solidão, até mesmo na altura em que goza o sol lá fora, solidão essa apenas interrompida por breves instantes de felicidade.
E no entanto chega luz
uma estranha, inesperada luz
à catacumba onde estou vivo
por força destas mãos.

O presente torna-se amargo, em contraste com o passado. Permanece, apesar de tudo, um ténue fio de esperança, num futuro dourado, adiado ad aeternum…

ardem-me os olhos (…)
e é com lágrimas dos dias, com este pranto redobrado que à obra puxo o lustro
dou bulha à sua vida e à minha
(Poema 48)
O último poema refere a aproximação da grande Ceifeira, o termo da vida útil como sapateiro, que para ele, equivalerá à morte:
vejo-me no brilho que te dou
ó espelho da minha mão.
Já faz vitória destes dias
últimos.

O Livro do Sapateiro é, assim, um livro de poemas aparentemente sereno mas que escondem um turbilhão de emoções e, por vezes um sofrimento pungente, que se concentra na mágoa como resultado da perda.


Cláudia de Sousa Dias
28.10.2011

Saturday, December 03, 2011

“Filhos sem filhos” de Enrique Vila-Matas (Assírio & Alvim)



Tradução de José Agostinho Baptista


Seguindo a ideia do escritor checo Franz Kafka, a servir de epígrafe a esta colectânea de short stories e fio condutor entre elas. Filhos sem Filhos é a expressão máxima do individualismo e, ao mesmo tempo, da indiferença expressa pelo cidadão anónimo, preso ao seu quotidiano, face ao colectivo, ao problema global, ao facto histórico, mesmo que contemporâneo, que lhe entra em casa pelo écran da televisão:

A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, fui nadar.” (Franz Kafka in Diários)

Filhos sem Filhos pode ser lido como uma história breve e singular da Espanha dos últimos 41 anos, precisamente a idade de Kafka quando faleceu, em Kierling. Os protagonistas destes episódios são todos filhos sem filhos, isto é, pessoas que não desejam nenhuma descendência. São detentores de uma personalidade distante da sociedade e cujo ego se alimenta somente a si próprio e, perseguindo a sua verdade, única porque exclusiva do mesmo ego, inventor de uma espécie de indiferença distante. Estas personagens são verdadeiras “máquinas solteiras” (mesmo que se encontrem casadas), segundo o critério do próprio Vila-Matas, e estão ligadas à realidade apenas por intermédio de um fio invisível, como o da teia de aranha. Todos os protagonistas parecem, assim, estar em sintonia com aquilo que Kafka escreveu no seu diário, em Agosto de 1914, uma vez que todos eles colocam ao mesmo nível, tanto o plano histórico como o pessoal.

A crítica considerou o livro “audaz e surpreendente, uma antologia de fantasmas ambulantes, sombras checas, pessoas pobres e outros génios da natação”. Ou seja, uma tribo de indiferentes, preocupados apenas com a realidade imediata. Uma colectânea de contos invulgar, que utiliza a personalidade do narrador principal como contraponto: um escritor casado e pai de onze filhos, que vai relatando as suas digressões pelas cidades do país, rurais ou cosmopolitas de forma aleatória no tocante à questão espácio-temporal. Como se se retratasse num diário, os episódios de que se vai lembrando, sem atender à ordem cronológica mas antes à ordem pela qual se vão “desenterrando” das profundezas da memória abrangendo, todas elas, uma amplitude temporal que ultrapassa as quatro décadas.

O narrador é um homem solitário, mas não sozinho: cultiva o gosto pelo recolhimento, pela reflexão sobre a vida dos habitantes e a mudança que nelas vai operando o Tempo. Mais: é um solitário adaptado, de situação financeira estável, casamento aparentemente sólido e com mais de uma dezena de filhos. Ou seja, em tudo o oposto das suas personagens, como se percebe logo na primeira narrativa na frase constantemente repetida pelo papagaio: “Amo-te, Rita”. Torna-se assim evidente de que este narrador não é nem uma “máquina solteira” nem um filho sem filhos.

As micro-narrativas de Vila-Matas

Na primeira estória, o narrador preocupa-se em explicar as linhas orientadoras dos textos seguintes, deixando escapar um ou outro detalhe relativo ao próprio quotidiano, para se demarcar das restantes personagens. Preocupa-se sobretudo em explicar como funciona a interacção entre o plano pessoal e colectivo:

Quando, por exemplo, se produz uma notícia de primeiro plano os fantasmas ambulantes que protagonizam os meus episódios nacionais vêem-no como uma ingerência nas nossas vidas e ficam à espera – que chegue a tarde, e então vão nadar. Todos são filhos sem filhos e a sua conduta na maioria dos casos faz lembrar esses seres aos quais a sua própria natureza os afasta da sociedade (…)não precisam que ninguém os defenda pois, sendo obscuros, a incompreensão não os pode tomar como alvo.

Todas as restantes personagens, que protagonizam os episódios seguintes, vivem numa espécie de limbo social, perseguindo cada qual um objectivo específico no qual centram todo o seu modus vivendi, numa acção específica, para a qual canalizam a quase totalidade do seu tempo: o trabalho, o amor, um ideal, um hobby. Ao quebrar-se o fio que une esse mesmo objecto à realidade quotidiana, esvai-se também a vitalidade do sujeito, o próprio desejo de viver, já que a ligação à comunidade não existe de forma sólida ou nem sequer existe de todo. Estas personagens têm, em si, algo de espectral, pela forma como passam pelos outros como se fossem invisíveis. Vivem exclusivamente para si e para os seus pequenos prazeres num habitat frágil, o qual corre o risco de se desagregar a todo o instante.

É o que acontece ao casal sem filhos, a viver em Granada, que fica sem emprego. E a Benito, em Madon, obcecado de tal forma com a profissão que se sente completamente perdido sem saber o que fazer durante as festividades do 1º de Maio. Nesta micro-narrativa temos a particularidade de o narrador ser uma espécie de olho invisível, preso ao mosquiteiro -, ou o próprio mosquiteiro da cama do casal -, como se lá estivesse implementada uma câmara oculta à qual só o narrador principal tivesse acesso.

O conformismo das gentes na tranquila cidade de Saragoça chega-nos através da voz do narrador principal, originário de Sá Rapite. Desta vez, o alvo do olho indiscreto do patriarca marido de Rita, é uma família que brinca com um suposto segredo, um nome oculto para a cidade,tal como na Roma dos antigos, que, lida ao contrario, revelava a essência secreta do coração da cidade ou o móbil que impulsionava a acção das suas gentes: Amor. Os Romanos eram movidos pelas paixões. Pulsões positivas e negativas. A pulsão que move a cidade de Saragoça é inquietante, sobretudo a da família que protagoniza o conto: subterrânea e sub-reptícia. Um segredo sub-rosa que se revela uma mistificação, dentro de uma família cuja união assenta numa mentira.

Em Cáceres, temos um filho adulto e superprotegido, controlado a tal ponto pelos pais que a sua personalidade se atrofia. O desejo de ascensão social e de escapar à poderosa sucção do buraco negro que é a miséria é, da parte dos pais, tão esmagador que para o filho, ser o melhor não parece ser suficiente. Os pais tratam-no como um incapaz, obrigando-o a desistir dos próprios sonhos e ele reage transformando-se num eterno estudante.

Em Arive, na Floresta dos Pirenéus , vive Fermín, o mendigo-poeta, um dom Quixote do século XX, mestre das viagens imaginárias, refugia-se na escrita para ocultar um espírito infantilizado.

Em Lugo, encontramos Liriñas, que trm o hábito de interromper as tertúlias científicas num café da localidade sem observar o menor sentido das conveniências. Massacra os participantes com as suas obsessões e comentários despropositados. Liriñas é o resultado de uma família religiosamente desenraizada dentro de uma comunidade asfixiantemente católica da Espanha profunda.

Em Port de la Selva é traçado um quadro social, inspirado numa frase de Walter Benjamim, mas aplicado às eleições em Espanha, em 1977, em analogia com um episódio similar ocorrido nos Estados Unidos. WB referia-se às eleições do governo local como uma grande palhaçada no circo de Oklahoma.

Em Barcelona, no ano de 1981, a chamada “capita beata” do país, como a apelida o Autor, encontramos uma família com um filho já entrado nos quarenta, casado por conveniência com uma mulher que se julga o centro do mundo e superior aos resto da humanidade. Ele, por seu turno, não gosta de ser confundido com um dos empregados do próprio pai, apesar de trabalhar para ele. Vive uma relação doentia com a esposa, a qual norteia a própria existência pelas aparências, nutrindo uma secreta dependência face ao álcool. Ambos esperam pacientemente o falecimento do patriarca para se apoderarem do património. Demasiado egoístas para terem filhos, não contam com os imprevistos da vida que lhe estragam os planos. Esta estória abrange várias décadas, cheia de avanços e recuos. É composta por uma narrativa principal e uma narrativa secundária que, a dada altura, se interceptam, ficando a segunda contida na primeira, servindo-lhe de complemento. Uma estória dentro de outra estória, como sucede com as bonecas russas. Desta micro-narrativa que é quase uma novela, destaca-se a má-criação e a arrogância e, sobretudo, a falta de decoro dos dois protagonistas, absolutamente detestáveis, quando visitam um casal idoso, cujo elemento masculino é um antigo empregado do pai. Dois entes a quem não se recomenda de todo a ambição de procriar.

De Alkize, no ano de 1970, chega-nos mais uma estória de um solteiro sem vocação paternal, a quem um jovem vizinho deseja ardentemente imitar: um celibatário, com uma vida aparentemente de sonho que se transforma no ídolo da juventude. Mas na realidade, este homem solitário é um ser socialmente débil, que se refugia na esplêndida mansão onde vive, tal como uma larva, eternamente imatura, no casulo de onde nunca chega a sair.

Da cidade de Salamanca, em 1975, emerge uma sinistra criança que sobressai pelo seu inquietante mutismo. Usa o silêncio para magoar os pais. Trata-se de uma personalidade verdadeiramente sádica. Desta vez, a voz narrativa é a da mãe da criança e, possivelmente, o narrador principal é o ouvinte. A mãe conta ao interlocutor viajante a forma como assistiu impotente ao desenvolvimento da malignidade do filho. A criança demonstra invariavelmente um comportamento bizarro: “fala” apenas com uma galinha, evidenciando ostensivamente o poderoso ódio que nutre pelos humanos. O pai, de ascendência italiana, é invulgarmente culto, de uma erudição que contrasta de forma gritante com a simplicidade da mãe que, no entanto, é uma pessoa extremamente intuitiva. O principal indício revelador do desenvolvimento desta estória encontra-se nas entrelinhas desta frase:

do seu longo perorar sobre o facto de nós, seres humanos, sermos portadores de venenos e de diabos interiores que “escavavam” qualquer uma das nossas realizaçõpes maravilhosas.

A frase vem do avô de Tito, a criança em questão, um sujeito simpatizante do fascismo e de cuja personalidade o jovem diabrete parece ser o herdeiro directo. Tito é, assim, uma criança que se diverte a fazer o chamado “terrorismo doméstico”: maltrata a mãe, a empregada, estraga os brinquedos à irmã. O seu principal padrão de comportamento é revelador de uma distorção da personalidade, usado para exercer com os outros uma relação de domínio. Tito é uma criança que extrai prazer com o sofrimento alheio. A maior parte das crianças revela, em determinada fase da infância e de uma forma mais ou menos acentuada, esta tendência. Mas o que torna este caso preocupante o seu desenvolvimento patológico, é o facto de a mãe, sem querer, reforçar este comportamento ao tratá-lo como um pequeno rei deficiente, fazendo de tudo para lhe agradar. Esta atitude ajuda a desenvolver uma personalidade tirânica, em tudo semelhante à do avô. Trata-se de uma criança destinada a nunca gerar filhos porque a personalidade é impeditiva. O desfecho da história é surpreendente e imbuído de uma certa crueldade, fazendo lembrar um conto de Edgar Allan Poe.

Em Toledo, um jogador maníaco, assiste à passagem do Mundial de Futebol, na Tv.

A sua vida, não há espaço para nada a não ser para o jogo. Não existem quaisquer outros interesses. Muito menos a família. O futebol invade-lhe mente como uma erva daninha.

Em Sevilha, 1957, José é um homem tão feio como o vampiro do filme Nosferatu. Mas isso não é tudo. É detentor de uma personalidade que lembra um verso de Rimbaud: José odeia a beleza mas deseja-a. E deseja a beleza que é proibida, o que faz dele a incarnação do Mal. Pelo facto de ser feio, mais do que feio, horrível, e mal amado pela sociedade. Por isso, por ódio, José deseja converter a beleza em dor, por ser incapaz de seduzir ou de se fazer amar…

O último conto deste volume situa-se em Palma de Maiorca, em 1951. É, portanto, mais uma história insular que vem, por isso mesmo, fechar um ciclo. Trata-se da história de um amor incestuoso, o qual, pela sua natureza, jamais poderá dar fruto.

Conclusão: O denominador comum às estórias de Filhos sem Filhos tem a ver com a incidência das mesmas na temática dos excluídos da vida, que insistem em viver segundo as suas próprias regras num mundo que construíram sozinhos para si mesmos. Quase todos se vêem a si próprios como o centro do mundo, impedindo-os de olharem verdadeiramente o Outro e de a ele se dedicarem.

O estilo e o discurso em Vila-Matas

O Autor recorre muitas vezes a artifícios que são do apanágio dos surrealistas, como a perspectiva do mosquiteiro para observar o casal trabalhador, durante o 1º de Maio, recorrendo à personificação e ao animismo. O mosquiteiro é, assim, dotado de alma.

Mas se Vila-Matas utiliza o surrealismo no estilo, adopta, em contrapartida, o realismo absoluto quando se trata da caracterização da expressão das emoções por parte dos seres humanos. Emoções não raro violentas em extremo. Recorre ao artifício da utilização de um narrador principal omnisciente – o patriarca –, o qual se encarrega de compilar as estórias e coleccioná-las num largo catálogo de personagens atípicas.

Enrique Vila-Matas é um escritor cujo público é formado por leitores que não se contentam com estórias banais. Trata-se de um escritor que escreve não sobre personagens épicas, históricas ou símbolos arquetípicos da perfeição. Vila-Matas constrói as suas personagens a partir de esboços de seres comuns, fazendo a sua caricatura a partir dos respectivos pontos fracos: o seu objectivo é quase sempre chegar à personagem do anti-herói, na qual o leitor consegue, quase sempre, encontrar algo que lhe é familiar ou que espelha esta ou aquela faceta da sua realidade quotidiana, a qual pode observar quer dentro de si, quer naqueles que o rodeiam.



Cláudia de Sousa Dias

11.10-2011