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Monday, November 08, 2010

“2666” de Roberto Bolaño - Livro V - “A parte de Archimboldi”



A quinta parte da saga acaba por ligar algumas pontas soltas em relação aos romances anteriores. Isto é, vai buscar a história do personagem que é o móbil de acção dos protagonistas do primeiro volume, o qual também desperta o interesse de Amalfitano, cuja atenção é, a dada altura, voltada para as questões locais da cidade que escolhe para viver.


Para recuperar a história de Archimboldi, o Autor faz uma regressão à transição do século XIX para o século XX, numa Alemanha rural, onde se começa por contextualizar o ambiente social, económico, histórico e cultural onde nasce o escritor. Prossegue com o relato da infância e antecedentes familiares, assim como alguns dos aspectos mais bizarros das suas origens: a deficiência física da mãe a que se junta a mutilação de guerra do pai, sequela da participação de Herr Reiter na Primeira Grande Guerra do século XX. Alguns aspectos interessantes da mentalidade local e, sobretudo, familiar podem ter marcado a infância de Archimboldi e estar relacionados com o rumo dos acontecimentos históricos: por exemplo, a convicção do pai de Archimboldi, de que os homens de pequena estatura são alvos mais difíceis do que os titãs com mais de 1.90 metros de altura. Roberto Bolaño dá, assim, a entender ter sido a obsessão pela eugenia e a preocupação dos exército alemão em seleccionar os melhores espćimens com melhor condição física um dos factores que contribuíram para o dizimar do exercito alemão durante as duas grandes guerras.



Outro factor interessante deste último romance do Autor é o apurado sentido de humor na voz de um narrador, não participante e omnisciente, como se a “voz” do Autor se projectasse na personagem e se rindo-se de si próprio ao relatar a infância do jovem Hans Reiter, mais tarde Benno von Archimboldi. Primeiro, o aspecto físico bizarro, “semelhante a uma alga”, depois o comportamento que se pode considerar excêntrico e algo misantropo em relação àquilo que sria comum nas crianças daquela comunidade: a obsessão pelo mar e pela vida abaixo da linha da água, que tem como consequência um tardio desenvolvimento linguístico, devido à falta de interacção social.



Outro aspecto que traduz o refinado sentido de humor de Roberto Bolaño e a invulgar mestria literária com que utiliza a toponímia local a sintetizar as características pelas quais são conhecidos os habitantes de cada aldeia: a Aldeia das Mulheres, a Aldeia dos Porcos, a Aldeia dos Sapateiros e assim por diante. Esta particularidade acaba, muitas vezes, por adquirir uma conotação anedótica ao mesmo tempo que cria um contraste interessante e abismal face ao volume anterior.



A Hans Reiter, tal como previa o pai, a estatura gigantesca parece ter facilitado o ter sido alvejado em plena batalha e precipitado a sua saída do teatro de guerra mas, por outro lado, granjeia-lhe a admiração entre os pares do exército. Mas ao aspecto ariano, que tanto impressiona os chefes militares e as mulheres românticas, junta-se um carácter introspectivo e tenaz, uma vontade férrea, um forte sentido de independência e pensamento crítico. Hans não se limita a acatar ordens. Possui convicções. E um sentido de justiça que não deixa margens ao conformismo. O humor de Bolaño torna-se corrosivo ao descrever, do ponto de vista prussiano, os vários tipos sociais europeus, quase todos equiparados a suínos – todos diferentes, todos iguais, mas todos suínos – excepto os Prussianos, os únicos europeus de classe A (vide página 737).



A história de Reiter/Archimboldi é, no período entre as duas grandes guerras, relatada do ponto de vista de um observador não participante ao qual nada escapa, um pouco como acontece os volumes anteriores. O tom caricatural e simultaneamente introspectivo do discurso aproxima este narrador de Günter Grass, escritor germânico da sua preferência. Exemplo disso é o episódio protagonizado por Reiter /Archimboldi e o lunático Vögel (pássaro), enquanto que a ternura que coloca nas palavras ao descrever os sentimentos do jovem Reiter pela irmã, Lotte, o aproxima do melancólico e nostálgico Alberto Moravia.



A ironia de que já falamos e que está a cada passo impressa no discurso do narrador reveste, de forma genial, o processo tentacular de disseminação da propaganda nazi entre as duas guerras e, sobretudo, durante a Grande Depressão dos anos trinta, feita porta a porta, recrutando jovens adolescentes para as suas fileiras usando a demagogia dos pregadores. Seguindo esta linha de pensamento, o Autor pretende realçar o empobrecimento cultural das classes dominantes alemãs que deixam os livros morrer, esquecidos nas estantes, fechados a sete chaves para não se estragarem. Ou para não serem lidos – pensamento que vai de encontro ao discurso do Reverendo em A Parte de Fate.
Este é o ambiente vivido em casa do barão von Zumpe, durante a infância de Reiter, onde a mãe trabalhava, na casa senhorial. Dos aposentos dos serviçais, Reiter assiste às festas orgíacas da jovem baronesa e aproxima-se da ovelha negra da família, o escritor Hugo Halder, um dos seus principais mentores. Halder desperta em Reiter o interesse pela leitura e pela cultura dando-lhe a ler os livros que o vão, gradualmente, conquistando: autores clássicos alemães e, também, estrangeiros. Mas ao entrar na idade adulta, Reiter muda novamente de cenário, indo viver para a cidade onde se torna um trabalhador estudante e, em muitos aspectos, autodidacta.




A chegada da Guerra e o destacamento para a Frente do Leste fazem-no perder de vista o amigo. Reencontra a Baronesa em circunstâncias inverosímeis, em várias ocasiões ao longo da vida. A jovem herdeira Von Zumpe é um verdadeiro camaleão: oriunda de uma elite, tanto borboleteia por entre os oficiais das SS e da Wehrmacht, atravessando a guerra como uma nuvem e à qual escapando incólume e sem se comprometer, como se torna na esposa de um milionário judeu no pós-guerra, dono de uma editora da qual se tornará sócia-gerente.
A temática da morte é uma constante nesta saga, sobretudo nos dois últimos volumes. Neste, a primeira alusão está patente na primeira história de amor vivida por Archimboldi, a fazer lembrar o romantismo de Göethe, pela poeta Ingeborg, que traz em si, já, o estigma da doença que se vai progressivamente agravando e culmina num final dramático, tal como a estória de Amalfitano e Lola na segunda parte.





À ideia da morte, está ligada a simbologia do gelo, assim como a da luz aparente das estrelas que já não existem,facto já referido pelo sacerdote em “A Parte de Fate”, aludindo paulatinamente à brevidade da vida e à traição suprema que é a inevitabilidade da morte. A mesma alusão dá-se, também , num banquete na Roménia onde estão presentes vários oficiais das SS e da Wehrmacht, a baronesa e o General Romeno seu amante, fazendo lembrar o banquete de Thaïs de Anatole France. Aqui, discute-se um pouco de tudo, desde as possíveis origens do Conde Drácula ou Vlad, o Empalador, o qual poderia quase ser equiparado a Hitler e seus acólitos, pelo frenesim de morte que o acompanha.



O discurso do narrador revela , nalgumas divagações, sobretudo a propósito do estado de Ingeborg, uma crescente preocupação do autor com o “estar doente” ou “estado de doença”, do ser-se doente crónico e, por último, terminal, facto a que, muitas vezes, não consegue evitar aludir.



O primeiro elo de ligação com o sucedido em Sonora, quase seis décadas mais tarde, vem a lume no local onde é referenciado um pintor alemão cujo trabalho era então considerado pelas “autoridades”na matéria, como “arte degenerada”, retratando uma grande quantidade de mulheres mortas, um holocausto retratado pelo pai de Hugo Halder, Conrad, a anteceder o horror dos campos de concentração nazis e o acontecido no Norte do México como fazendo parte do lado mais terrível da natureza humana.



A guerra segue o seu curso com Reiter ainda integrado na frente do leste Europeu, onde nos é descrita a beleza gélida dos rios – Reiter continua atraído pelo meio aquático – cuja descrição proporciona um interessante contraste com o barulho atroador do teatro de guerra, assombrado pelo fogo, pelas cinzas e pelo fumo, deixando atrás de si um rasto de destruição e morte. O Autor chama a atenção para o indescritível fragor da batalha que acompanha o stress permanente dos soldados, para o espectáculo traumático da guerra e para pusilanimidade de alguns líderes, que na realidade não o são.



Um ponto de viragem essencial na trama tem a ver com a consolidação das convicções de Reiter/ Archimboldi, é a estadia forçada após um ferimento, na casa abandonada de um escritor judeu, entretanto desaparecido. Lá, encontra o diário com as memórias do dono da casa. A leitura permite-lhe estabelecer de imediato uma grande empatia com o autor daquele manuscrito, estabelecendo-se, a partir de então, como que um diálogo interno entre o leitor e o texto. É assim que Hans Reiter toma contacto com o outro lado da guerra, isto é, com aqueles a quem o “seu” exército pretende erradicar do território pertencente ao domínio alemão. O escritor judeu desencadeia em Reiter uma revolução ideológica que lhe desperta a curiosidade para a leitura dos “escritores proibidos”, referenciados no mesmo caderno.



As consequências não se fazem esperar. Daqui só pode nascer um sentimento de repúdio perante a manifesta ausência de sentido crítico num povo e pela omnipresença de uma servil e cega obediência às normas, mesmo que irracionais ou desumanas. Kant, Hegel, Feuerbach, Pascal sopram-lhe ao ouvido quando toma a decisão emocional de ajustar contas com o funcionário que mandou executar um contingente de judeus, despachando-os para o campo onde viriam a ser exterminados, apenas por uma questão logística: manter aquelas pessoas na localidade seria demasiado trabalhoso e dispendioso - note-se que o funcionário não recebeu uma ordem, preferiu optar pela solução mais fácil e ficar “bem visto” pelas instâncias superiores.


A parte de Archimboldi faz as delícias dos germanistas que podem desfolhar, ao longo do volume, uma mini-história da literatura germânica, desde o Romantismo até ao final do primeiro quartel do século XX.
Ansky, o autor do caderno fala, também ele, de doença e morte, de um sentimento desolador de impotência face ao desejo imperioso de viver, face à forma cínica como a morte põe cobro a todas os sonhos eliminando, de forma escarninha, toda e qualquer forma de desigualdade.
Exemplo disso, é o fim do garboso General Popescu, amante inexcedível, mas de uma completa nulidade militar, um poltrão numa situação de emergência. Um vampiro neutralizado pelos próprios soldados como se fosse o próprio Vlad, o pior dos monstros.



O narrador, através de Reiter, alude frequentemente à cultura azteca, sobretudo na questão dos sacrifícios humanos e na adoração masoquista e inconsciente de deuses sedentos de sangue a que compara a submissão do povo alemão à tirania de Hitler.



Ao iniciar a sua actividade como escritor, já no pós-guerra, Hans Reiter decide mudar de identidade ou ocultá-la debaixo de um nome camuflagem: Benno – como Benito Juárez, revolucionário do México – e Archimboldi, em homenagem ao talento do pintor italiano Giuseppe Arcimboldo, perito na construção da imagem de figuras antropomórficas, compostas apenas por legumes e frutos onde a percepção se altera consoante a perspectiva: o todo (o homem) ou as partes (o fruto).



Tal como Arcimboldo, Hans muda, também, a forma de olhar e interpretar a realidade, a qual adquire uma configuração completamente diversa, quando relacionada com a teoria do modelo psicológico da gestalt (forma, configuração, em alemão). Mas a história de Benno von Archimboldi é a história de como nasce um escritor. Ou de como alguém se torna escritor., isto é, o resultado de um conjunto de experiências vividas mais o conhecimento adquirido através da leitura.



Já acerca da relação entre fama e literatura, tanto para o Autor como para personagem, não há dúvidas: trata-se de uma relação de inimizade ou de franca oposição, uma vez que, para ambos, esta parece ser redutora, por se cimentar no arrivismo, no equívoco, ou na mentira.



Hitler era famoso. Göering era famoso. A pessoas que ele amava não eram famosas mas cobriam certas necessidades. Döblin (Alfred) era o seu consolo. Ansky era a sua força. Ingeborg era a sua alegria. O desaparecido Hugo Halder era a leveza da sua vida.



Quando Archimboldi decide publicar o primeiro romance, acaba por terum reencontro inesperado, que irá precipitar o lançamento dos seus livros no mercado editorial; e um segundo que o levará ao México e ao local de acção dos outros volumes num final que parece apontar – ou não – para um cruzamento com a trajectória das personagens dos volumes anteriores.


O romance 2666 é uma obra literária nitidamente inspirada no pintor renacenascentista, acerca da qual hoje se pode pensar, de acordo com a teoria da gestalt, que os pormenores se diluem na perspectiva mais generalista que é a forma. E, no caso de 2666, o lixo da história é decomposto, apodrecido e deteriorado pela passagem do Tempo e pela dissipação da consciência de que natureza fundamental da alma humana não muda.



Cláudia de Sousa Dias

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