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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, June 12, 2010

"Venenos de Deus, Remédios do Diabo" de Mia Couto (Caminho)






Mia Couto é originário da província da Beira, em Moçambique, tendo acumulado ao longo de um vasto percurso profissional, as funções de professor, biólogo, escritor e jornalista. Está traduzido em diversas línguas e obteve, já, a nomeação pelo júri da Feira Internacional do Livro de Zimbabwé com a obra Terra Sonâmbula, como um dos melhores livros africanos do século XX.

Foi galardoado com o Prémio Vergílio Ferreira, 1999 pelo conjunto da obra, até então publicada, e com o Prémio União Latina de Literatura Românica 2007. Arrebatou ainda o Prémio Passo Fundo Zaffari e Bourbon da Literatura pelo romance O Outro Pé da Sereia, também em 2007.

Venenos de Deus, Remédios do Diabo é uma divertida sátira, como se subentende já a partir do trocadilho, implícito no título. Possui, no entanto, uma faceta dramática trágica, associada à fragilidade da situação social de que gozam as personagens femininas do romance, como é frequente nas estórias de Mia Couto. Outro tema recorrente na obra deste Autor é, também, a pobreza endémica, reflectida na ausência estrutural de oportunidades com particular incidência nos meios rurais, assim como um conjunto de circunstâncias às quais não estão alheios alguns costumes e tradições associados à submissão de um dos géneros pelo outro. Ou, simplesmente, a que os mais fortes esmaguem os mais fracos, independentemente do género a que pertençam. Para fazer face a este domínio despótico, há quem recorra à construção de uma complexa teia de mentiras e enganos, com vista à sobrevivência, uma missão quase impossível em meio hostil.

O Local da Acção – A Vila Cacimba

A pacata Vila Cacimba é governada pelo autarca Suacelência, que deseja exibir autoridade e prestígio social, isto é, distinguir-se dos habitantes da aldeia. A exibição de símbolos de poder é a característica mais marcante desta personagem, que começa por estar patente na forma como trata a mulher, Dona Esposinha, que parece mais uma governanta ou uma simples criada, pela forma como acata as ordens do marido, movendo-se sempre de forma furtiva de forma a ser notada o menos possível. Dona Esposinha aparece, na estória, vestida de cinzento o que contribui, também, para a sua invisibilidade, confundindo-se com as tonalidades da cacimba que envolve a aldeia.

O marido, Suacelência, gosta de exibir produtos caros, de preferência importados, como é o caso das bebidas: segura um copo de whisky, como símbolo de poder ou estatuto social. Também está interessado em adquirir produtos, não de higiene, mas que impeçam a transpiração porque “o suor é coisa de pobre”.

A rotina dos habitantes é, no entanto, agitada pela chegada de um médico, proveniente de Lisboa, no momento exacto em que a comunidade é afectada por um surto de meningite. A doença lança o pânico na população, habituada a atribuir a origem destes fenómenos a causas sobrenaturais.

O jovem médico Sidónio Rosa, apelidado pelos locais de Sidonho, chega a Vila Cacimba em busca da jovem Deolinda, uma beldade oriunda daquelas paragens, que conheceu em Lisboa, e instala-se na aldeia onde vive a família da jovem, Dona Munda e Bartolomeu Sozinho.

O casal, de personalidade controversa, acabará por roubar o protagonismo ao par romântico da história. Na realidade, Bartolomeu Sozinho é um idoso diabético, hipocondríaco e agorafóbico, responsável por algumas das tiradas mais hilariantes do romance. Bartolomeu delicia-nos com a sua loucura mansa e a tendência compulsiva em falar através de provérbios, pautando o pensamento ora pelo senso comum ora pelo absurdo, desconcertando os leitores e arrancando sonoras gargalhadas.

E Dona Munda afigura-se como a personagem mais complexa e misteriosa da trama, da qual tomamos consciência, logo no início, de possuir muitos segredos para revelar. A chave que ajuda a decifrar os enigmas com que se depara Sidónio Rosa, está implícita nas entrelinhas, do primeiro diálogo que entabula com dona Munda, a qual começa por debitar o seu infindável rosário de queixas e lamentos acerca do marido:

Diz que se ele é diabético eu sou diabólica.

Inicialmente, a fragilidade psíquica de Bartolomeu, que tal como o explorador anseia vaguear por terras distantes, retira-lhe a credibilidade, ao passo que a de dona Munda se vai aguentando, por algum tempo, camuflada no seu papel de esposa dedicada e sofrida de um velho marinheiro na reforma.

O mar é o habilidoso desenhador de ausências, diz.

De queixa em queixa, de contradição em contradição, Sidónio acaba por descobrir a verdade sobre as origens e o paradeiro da namorada.

Enclausurado no quarto, Bartolomeu sonha com a época distante em que era tripulante de um transatlântico, ainda durante a presença portuguesa em África. Anseia por partir novamente e ver o horizonte modificar-se. No fundo, Bartolomeu representa os desejos do povo da terra: a mudança para uma vida diferente e melhor. Onde o tédio seja a única ausência.

Para afugentar a sombra do vazio, imposta pela rotina dos dias sempre iguais, Bartolomeu sonha com um remédio, receitado pelos sussurros maliciosos do Eros: uma virgem que faça amor com ele e o cure de todos os males, do corpo e do espírito, segundo a crença popular. Bartolomeu possui um humor escatológico, picante. Mas do discurso que, à primeira vista, parece primar pelo absurdo, parecem emergir as verdades mais inquietantes do abismo das entrelinhas, nas frases crípticas que pronuncia.
No entanto, Bartolomeu mostra-se, também, um homem que não hesita em recorrer a pequenas chantagens ou extorsões com vista a obter pequenos benefícios. Nesta história não parece haver ninguém que não tenha cometido uma espécie de pecadilho, por pequeno que seja. Nem mesmo Sidónio. Nem sequer Deolinda se mostra a heroína perfeita dos romances.

Dona Munda parece demonstrar uma evidente dificuldade em aceitar o envelhecimento ou, pelo menos, a chegada dos primeiros sinais de perda da beleza e juventude com o fim da idade fértil, o que lhe provoca a sensação de que a vida lhe passa em vão.

Dona Munda não é uma mulher realizada. É por esse motivo que tenta obter, por todos os meios ao seu alcance, uma compensação. Não hesita em utilizar estratégias de sedução, chegando mesmo a competir com Deolinda, cuja beleza sempre lhe causou embaraço. Amante exímia e ardente, Dona Munda é, também, uma excelente actriz. No tempo em que ela e Bartolomeu eram ainda um casal, representava sem dificuldade, o papel das diversas amantes do marido, desdobrando a própria personalidade, num sem fim de heterónimos eróticos. A capacidade de efabular de Dona Munda não se restringe aos jogos sexuais com o marido; Dona Munda consegue iludir quase todas as personagens, excepto o próprio Bartolomeu.

Eu fui sempre as putas dele.

(…)

Me putifiquei tanto, Doutor.

Dona Munda está cansada de tratar de um marido doente, com problemas psíquicos. Além de alimentar rancores antigos, relacionados com infidelidades, sejam elas concretas ou imaginárias. Por isso, tentará convencer Sidónio a dar-lhe um “remédio venenoso”, uma espécie de veneno divino. Ou remédio diabólico.

Eu quero um remédio para ele ficar pior (…), pioríssimo.

Dona Munda quer mudar de vida, mas o marido vivo é um obstáculo. Urge, portanto, pôr cobro a uma situação na vida que não a satisfaz: o casamento. E sem o estigma social de mulher divorciada.

Não é que eu seja infeliz. Eu não sou é feliz.

Para Dona Munda “A ausência de felicidade e infelicidade é ainda mais penosa do que o sofrimento.”
A explicação para a sua atitude, baseia-se no facto de Que aquilo não era imoralidade nenhuma. No fundo, o marido já estava falecido, o remédio era só para ele, Bartolomeu, se lembrar que já estava morto.

No entanto, quando Bartolomeu casa com Munda, fá-lo fascinado pela sua beleza ignorando, durante muito tempo, os pequenos ódios que esta lhe dedica:

A beleza das mulheres (…) é como um desses dourados espinhos com que os bichos paralisam as suas vítimas.

É através de Bartolomeu e das suas palavras sibilinas que começamos a suspeitar que, em Vila Cacimba, as coisas não são exactamente aquilo que parecem:

Os segredos em Vila Cacimba não se enterram em cova. Ficam um buraco aberto como ferida que nunca fecha ou cicatriza.

Os habitantes de Vila Cacimba e a relação com o sobrenatural

A relação de Bartolomeu com a divindade não é pautada pela culpa e pelo medo, como na cultura judaico-cristã. É, antes, estabelecida quase num plano de igualdade, onde se presta o culto aos antepassados.

Com os deuses falamos. Rezar é sempre uma declaração de culpa. Começamos, submissos, por nos declararmos filhos dele. Mas na verdade o que queremos é ser Deus. É por isso que a reza é sempre um pedido de desculpas.

O Riso

O riso, em Mia Couto, parece agir como barreira contra a desigualdade e actuar como dissipador da desconfiança,uma vez que esses mesmos momentos de riso entre Sidónio e as restantes personagens são sempre de comunhão, aproximação entre elas.

Mas apesar desses momentos de riso partilhado, o português Sidónio Rosa, na sua eterna busca por Deolinda, sente-se um estrangeiro, um peixe fora de água. Contudo, não deixa de sentir o afecto que lhe dedicam as pessoas. Mesmo que esse afecto não seja totalmente desinteressado. É, também, frequente confundirem a sua actividade profissional com a do feiticeiro, como acontece com Suacelência ou Bartolomeu.

Medicamente-lhe lá um xarope que faça a minha Mundinha me aceitar

A vinda de Sidónio para a Vila Cacimba está directamente relacionada com a busca do amor, mas as circunstâncias ampliam a intimidade crescente com os habitantes locais, sobretudo com os parentes da jovem cuja ausência, associada a uma série de contradições e pormenores mal explicados, começam a intrigar bastante jovem médico. Mas para ele, Amar é estar sempre chegando, o que o impele a uma procura contínua. Acaba, no entanto, por descobrir a verdadeira natureza das relações dos Sozinhos e, também, de outras personagens com Deolinda.

Em casa dos Sozinho, o ambiente físico acompanha o ambiente psíquico, que é caracterizado pela dissimulação:

O escuro (cortinas corridas, luz apagada) era uma espécie de vestimenta para a casa e de mortalha para os espelhos.

A escuridão, está sempre associada à ideia de secretismo, ao desconhecido e impede que lembranças e a sombra dos mortos se arraste pela casa. A mesma escuridão envolve as relações de parentesco dos Sozinhos com Deolinda e o motivo do seu desaparecimento.

Subjacente à acção de Venenos de Deus, Remédios do Diabo, está a ideia de fatalismo, ligada à crença na impossibilidade de mudar as coisas pela via normal ou legal, o que leva à inércia generalizada e à busca de paliativos para fazer esquecer a situação.

A ideia é a de que Se Deus não ajuda, como recusar o auxílio do Diabo?

Uma crença baseada na impossibilidade de inverter uma situação que é fruto do ciclo vicioso da pobreza nas gentes da Vila Cacimba e encontra o expoente máximo nas atitudes de Bartolomeu, face às notícias relativas à dívida externa perante as quais decide destruir a televisão, julgando assim acabar com a dita dívida. Ignorar a situação, fingir que os problemas não existem é o que fazem todos, preocupando-se apenas com o quotidiano e o imediato. A solução, para esta maioria, consiste em falsear os dados, em efabular e delinear complicados esquemas de burla para conseguir vantagens, recorrendo mesmo à chantagem e à extorsão.

O Autarca local, Suacelência, é um verdadeiro senhor feudal: é o único que acumula riqueza, usufrui das mulheres da aldeia, trafica-as, usando o hotel local como camuflagem. É um homem que mascara a corrupção que pratica, da mesma forma que pretende disfarçar o suor sobre a pele. Também em relação à epidemia de meningite, Suacelência tenta fazer as coisas à sua maneira: chama Sidónio a sua casa para tratar com ele dos detalhes para debelar a doença. No entanto, está - ou pretende estar – convencido de que se trata de uma maldição ou, simplesmente, de um acto de bruxaria.

Sendo um homem místico, acredita no sobrenatural. Na ânsia de conhecer um pouco do “outro mundo” pede a Sidónio, a quem se dirige um pouco como a um feiticeiro tribal, um remédio para desmaiar, ao tentar encomendar-lhe ”um falecimento de duração temporária”. A mulher, Dona Esposinha comporta-se, como já foi referido, de forma oposta: é uma figura apagada vestida de forma anódina, de cinzento, de voz sumida, precocemente envelhecida, alguém em quem normalmente não se repara. Desempenha, no entanto, um papel fundamental no desenlace e na tomada de decisão final de Sidónio Rosa. Já muito próximo do desfecho da acção, Sidónio exclama, ao ver-se enredado em múltiplas e ambíguas verdades :

Tenho inveja da coruja que é capaz de ver de noite

Sidónio sente desejo de enxergar através das trevas e descortinar o que há de realidade dentre o caldo de mentiras que lhe cozinharam...

A chave do Romance

À medida que se avançamos no romance, apercebemo-nos de que, para algumas personagens, a verdade é apenas um veneno de Deus. A verdade coloca as coisas no seu devido lugar mas ilumina a realidade com cores que nem sempre são belas. E não resolve, no seu entender, problemas sociais ou apresenta soluções no sentido de melhorar a qualidade de vida dos que vivem na miséria. As oportunidades, simplesmente parecem não existir, nem há o mínimo esforço para serem criadas por parte das inúmeras Suacelências que possuem os meios para tal, mas que os utilizam, apenas e só, em proveito próprio. É por esta razão que algumas recorrem a expedientes pouco lícitos. Tecem, como aranhas humanas que acabam por ser, toda uma complexa teia de enganos para conseguir os seus intentos. Porque a verdade mostra-lhes apenas as cores tristes de uma realidade que é composta pela infelicidade.

É desta forma que Mia Couto descreve o ciclo vicioso de uma espécie de pobreza de espírito, que se manifesta através de uma total ausência de esperança ou fé na humanidade que parece afectar todos os níveis sócio-económicos. Sidónio Rosa apercebe-se do facto, o que acaba por levá-lo a partir, abandonando definitivamente a Vila Cacimba. Mas só após provar as flores do esquecimento, oferecidas pela (quase) invisível de tão discreta Dona Esposinha. O paliativo que faltava a Sidónio tem o apelativo nome de beijo da mulata: as flores brancas do esquecimento que crescem no cemitério dos soldados europeus sendo que um deles éo antepassado de Deolinda responsável pelo tom mulato-claro da sua pele, quando comparada com os restantes membros da família. As flores, oferecidas a Sidónio por dona Esposinha, contêm um opiáceo alucinogéneo que permite a Sidónio reencontrar aquilo que procura. No entanto, a volta à realidade o ponto de viragem para uma nova vida, deixando para trás o passado e a Vila Cacimba arquivado na gaveta da memória. Esquecimento e partida. E a melancolia que se segue, normalmente, ao fim de um grande amor.


Cláudia de Sousa Dias

5 Comments:

Blogger marcelo said...

um dos bons romances de um dos meus escritores preferidos...
excelente escolha.

3:35 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

o autor vai estar hoje na biblioteca de Famalicão às 21:00.


csd

10:17 AM  
Blogger Totoia said...

Foi a minha primeira leitura de Mia Couto desde então não tenho parado de o ler e recomendar. Gosto muito.

2:07 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

eu também. Este texto precisa de uma revisão. estive a ler e não gosto de como está...


csd

10:57 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

bom agora já melhorou um bocadinho.

O que não quer dizer que daqui a alguns meses não encontre pequenas coisas que decida alterar...


csd

12:39 PM  

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