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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, April 26, 2010

“Deserto” de J.M.G. Le Clézio (Dom Quixote)





Jean-Marie Gustave Le Clézio nasceu na ilha Maurícia, mas as suas origens remontam à Bretanha. Os seus antepassados emigraram no século XVIII para aquela ilha, de modo que se trata de um escritor de língua francesa, apesar da cidadania britânica. A segunda Guerra Mundial passou-a em Nice juntamente com a mãe e, acabada a guerra, a família reúne-se com o pai na Nigéria, onde este serve como cirurgião do Exército Britânico.

Le Clézio leccionou nos Estados Unidos adquirido a fama como escritor aos 23 anos, com o primeiro romance, Le Procès-verbal, seleccionado para o Prémio Goncourt e vencedor do Prémio Renaudot, em 1963. Publicou, desde então, cerca de quarenta obras, incluindo contos, romances, ensaios, duas traduções relacionadas com a temática da mitologia indígena americana.

A carreira de Le Clézio é marcada por duas fases distintas: de 1963 a 1975, Le Clézio dedica-se a explorar temas como a loucura, a linguagem ou a escrita, dedicando-se à experimentação formal.

A obra de Le Clézio foi muito elogiada por intelectuais como Michel Foucault e Gilles Deleuze. Mas no final dos anos 1970, o estilo do escritor sofre uma mudança drástica, quando decide abandonar a experimentação e passa a abordar temas como infância, adolescência e as viagens, tornando-se mais popular. É nesta fase que se inclui, Désert (Deserto), o romance de que aqui tratamos que, em 1980, foi o primeiro vencedor do então recém-criado Prémio Paul Morand pela Academia Francesa.

Casado e com duas filhas vive, desde 1990, entre Albuquerque, a Ilha Maurícia e Nice.

Em Deserto, a felicidade, tal como é entendida por Lalla, é descrita com toda a inocência de quem é dono do tempo, facto que lhe permite observar-se e reparar em tudo aquilo que lhe dá prazer ao encontrar a felicidade em pequenas coisas, desde as cores do deserto até ao voo “pesado” das vespas ou na contemplação da agilidade das moscas. Porque a felicidade de uma criança como Lalla está em poder dispor do seu tempo: as horas espraiam-se diante de si como as dunas que lhe põem ao alcance da vista, a beleza dos insectos que não se cansa de contemplar – a transparência das asas das moscas azuis, a cintura microscópica das vespas, o arrastar das escolopendras, com as suas inúmeras patas. A mesma felicidade parece-lhe brotar da pureza do ar e da suprema liberdade de que goza, apesar da escassez de água que, em circunstâncias extremas, significa a morte.

A imagem e as sensações visuais, tácteis e térmicas estão muito presentes ao longo do romance, apostando o Autor nos contrastes violentos: a luz feérica durante o dia, o gelo e o imenso silêncio durante a noite, sob um imenso manto de estrelas. Esta oposição e entre luz e sombra tem um significado metafórico e consiste numa das principais características que denunciam a beleza sublime do texto de LeClézio onde a um inferno marcado pela luz impiedosa do sol diurno se opõe a imensidão negra da noite, iluminada por uma claridade de gelo, lembrando o estilo poético presente no Livro do Génesis:

só se avistava o planeta Júpiter, estático no céu gelado. A luz da Lua envolveu tudo com a sua bruma (…) Tudo era imenso e gélido, a luz branca da Lua tudo afogava e cegava.


A descrição da paisagem do deserto revela uma paz que não se vislumbra no meio da selvajaria e da sujidade da maior parte das cidades europeias.

A tradição oral dos povos do deserto está, também, presente no livro que destaca a beleza das lendas tradicionais, contadas pelos mais velhos às gerações mais jovens, à volta da fogueira – o fogo que adquire, também, uma significação mística e religiosa. Grande parte destas lendas, algumas delas retiradas do Corão, têm ainda uma forte intertextualidade com a Bíblia, uma vez que a sua finalidade é, sobretudo a de explicar, de forma metafórica ou alegórica, fenómenos naturais que são, à primeira vista, incompreensíveis e aproximar mais os homens de uma ideia de justiça que lhes possibilite viver num meio de condições físicas tão adversas como o deserto.


Os povos daquelas paragens vêem-se na necessidade de acreditar num deus que sirva de refúgio supremo, que seja um escudo protector face aos elementos. Deus é um oásis para estes povos, ou melhor, o oásis é a recompensa final dada pelo deus, o paraíso ansiado desde tempos imemoriais.

A cultura dos povos do deserto no Norte de África é, neste romance, radiografada pelo olhar de uma criança – Lalla – descendente dos lendários guerreiros azuis, nómadas e seguidores de um líder espiritual muçulmano, tido como santo, Ma el Ainine.

O mesmo olhar inocente da criança que vive entre as dunas e o mar disseca a cultura ocidental cuja sociedade, orientada para o consumo, faz dos homens escravos de um deus chamado Dinheiro.

A observação da cultura ocidental pelos olhos ambarinos de Lalla, que transportam a luz dos deserto, revelam-nos o lado menos belo e menos brilhante da mesma cultura urbana ocidental, que normalmente nos esforçamos por ignorar na esperança de adquirirmos o nosso próprio oásis (moradia ou apartamento) que compramos com o dinheiro de um trabalho, conseguido e mantido a duras penas. Um paraíso, na maior parte das vezes, ilusório.

Lalla chega ao ocidente grávida de um pastor surdo, Artani, por quem se apaixona e descobre o amor. Atravessao o Mediterrâneo para fugir a um casamento indesejado,imposto pela família, com o auxílio da Cruz Vermelha, seguindo o feitiço de uma melodia francesa ouvida na rádio – Mediterranée. Lalla chega a Marselha juntamente com uma multidão de imigrantes que pretendem trabalhar na Europa. Procura uma cidade mítica, maravilhosa, um oásis de liberdade absoluta que, para si, se encontra ameaçada com a perspectiva de um casamento imposto pela família, com um homem de negócios, agora que está na iminência de se tornar adulta. No entanto, em vez da tão esperada liberdade encontra a escravidão: salários miseráveis e condições de habitação infectas, para além de uma possibilidade muito remota de encontrar um trabalho digno pela falta de qualificações.

A extrema violência no mundo dos excluídos culmina com a trágica morte do amigo cigano de Lalla. Apesar de bafejada pela Sorte, que é atraída pelo magnetismo da beleza exótica de Lalla, a errância está-lhe nos genes, traduzindo-se num irreprimível impulso de evasão. O preço de uma existência dourada semelhante à vida num serralho que lhe promete o mundo da publicidade e da moda implicam a restrição à sua liberdade. Tal como o casamento. Mas Lalla é um animal selvagem. Do Deserto. Descende das ancestrais tribos nómadas do lendário Ma el Ainine…E Lalla acabará por não resistir ao chamamento do deserto à procura da Árvore da Vida, neste caso uma figueira. A figueira representa, aqui, a abundância no meio da privação, que Lalla consegue atrair em qualquer meio onde se encontre. E é debaixo de uma figueira do deserto, entre as dunas e o mar, que Lalla decide dar à luz, à sombra de uma árvore odorífera que lhe faculta alimento e protecção pela sombra fresca que se desprende da folhagem…

Mas a leitura de Deserto pode ser efectuada sob dois prismas diferentes: tanto pela dicotomia Oriente/Ocidente, pelo transitar da personagem Lalla dum mundo de regras e sujeições para o qual não está preparada; como pela análise transversal de duas épocas, com um hiato de meio século – um abismo temporal a que aos anos 1960 do século XX se opõe o período em que vive Nour, em 1910, durante a ocupação da região pelo exército francês, às portas da Primeira Guerra Mundial. Uma altura em que as tribos nómadas da região são empurradas para norte, pelo Exército Colonial Francês, acabando por ficar encurraladas entre os canhões e as baionetas e o Mediterrâneo. O exército persegue de forma implacável a comitiva do xeque Ma el Ainine, o líder espiritual que une várias tribos e a quem o general classifica de “fanático” e de “selvagem”.
Esta narrativa de segundo plano, que na edição portuguesa é apresentada num formato diferente – com uma margem esquerda bastante mais larga para dar a ilusão de ser retirada de um relato em pergaminho – consiste na descrição da penosa marcha dos beduínos, criando uma intertextualidade com as migrações descrita na Bíblia no livro do Exodus. Trata-se de uma escrita de elevado teor poético, de grande beleza, onde predominam os sentimentos de nostalgia, melancolia e solidão.

Caminhavam desde o romper da alva, sem parar, atolados na ganga da fadiga e da sede. A secura endurecera-lhes os lábios e a língua. A fome roía-os. Nem teriam podido falar. Havia muito que se tinham tornado mudos como o deserto, cheios de luz quando o sol arde no centro do céu vazio e gelados pela noite crivada de estrelas imóveis.

(…)

Sob os mantos, os fatos azuis estavam em farrapos, rasgados pelos espinhos, gastos pela areia.

(…)


Eles eram os homens e as mulheres de areia, do vento, da luz, da noite.
(…)

Levavam com eles a fome, a sede, que faz sangrar os lábios, o silêncio onde luze o sol, as noites frias, o clarão da Via Láctea, a Lua: com eles viajava a sua sombra gigante ao pôr-do-sol, acompanhavam-nos as ondas de areia virgem, tocadas pelos dedos, afastadas dos seus pés. Tinham sobretudo a luz do olhar que brilhava tão claramente na esclerótica dos seus olhos.

(…)


A enumeração é outro recurso de estilo de que se serve o Autor para dar ideia da imensidão não só em termos de distância percorrida pelas tribos como da variedade das gentes que dela fizeram parte:

Tinham acorrido a todos os pontos do deserto, para lá da Hamada de pedras, das montanhas de Chebiba e de Quarkziz, do Sirouc, dos montes Oum Cha Korert, para lá mesmo dos grandes oásis do sul, do lago subterrâneo de Gourara. Tinham atravessado as montanhas do desfiladeiro de Marder em direcção a Tarhamant ou, mais abaixo, lá onde o Draa vai ao encontro de Tingut, por Regbat. Tinham vindo todos eles, todos os povos do sul, os nómadas, os comerciantes, os pastores, os ladrões e os mendigos. Alguns talvez tivessem vindo do reino do Biru ou do grande oásis de Oualata. As caras tinham a marca do sol medonho, do frio mortal das noites, nos confins do deserto. Alguns deles eram de um negro quase vermelhos, altos e longilíneos, falando uma língua desconhecida: eram os Tubbus, vindos do outro lado do deserto, do Borku e do Tibesti, os comedores de nozes de cola que iam até ao mar.

A dimensão deste êxodo e as provações e privações por que passaram aqueles que dele fizeram parte nada fica a dever ao da Bíblia, pois trata-se uma vasta população que, fugindo da escravatura de um império faraónico, procura preservar a sua identidade motivada por uma sede imensa de liberdade. Os nómadas deste romance não fogem à tradição errante das gentes dos desertos de há alguns milhares de anos atrás. Mas desta vez o Império dos Faraós está sediado na Europa do início do século XX, cujo Imperialismo começa a dar sinais de declínio cada vez mais alarmantes. Os nómadas de Deserto são os desenraizados pelo império colonial francês, que os obriga a uma cruel errância pelas terras mais áridas do globo no Norte de África, um pouco como os curdos na transição do século XX para o século XXI.

As gentes nascidas do deserto revelam-se possuidoras de uma resistência física e força de espírito para nós inimaginável, o que explica que crianças como Nour e mesmo o adolescente errante com quem Lalla descobre o amor, décadas mais tarde, conseguem encontrar a felicidade dentro das privações. Porque têm um mundo de beleza, pura, agreste e indomável diante e dentro de si. Resistem até ao limite, até chegarem a uma cidade junto de um oásis onde saciam a fome:

Comiam agora a cozedura do milho, regado com leite coalhado, o pão, as tâmaras secas que sabiam a mel e a pimenta. As moscas e os mosquitos dançavam em torno do cabelo das crianças, no ar da tarde, as vespas pousavam nas mãos, nos rostos sujos de poeira.
Falavam agora em voz muito alta e as mulheres na sombra abafada das tendas riam e atiravam pedrinhas às crianças que brincavam.
(…) Mas no entanto os homens e as mulheres com os rostos e os corpos azulados pelo anil e pelo suor conservavam o silêncio: afinal não tinham deixado o deserto. Não esqueciam
.

O primeiro capítulo desta narrativa secundária surge como uma espécie de prólogo, servindo para explicar depois, a história que se desenrola no tempo “presente” e mostrar o nível de resistência e a coragem dos sobreviventes à travessia do mar de areia, levando ao limite as forças dos sobreviventes que chegam vivos ao poço ou ao oásis mais próximo.

Caminhavam lentamente para a água dos poços para dessedentarem as bocas a sangrar. O vento tinha começado a soprar lá em cima, na Hamada. No vale, ia perdendo a força, nas palmeiras anãs, nas sarças, nas cidades de pedra seca (…). O céu não tinha limites, de um azul tão duro que queimava a cara.

(…)

Era aqui a ordem vazia do deserto, onde tudo era possível, onde se caminhava sem sombra, à beira da sua própria morte.

(…)

Os homens e a s mulheres viviam assim, sempre a andar, sem encontrar descanso. Morriam um dia, surpreendidos pela luz do sol, atingidos por uma bala inimiga ou então consumidos pela febre. As mulheres punham os filhos no mundo, simplesmente acocoradas na sombra de uma tenda, amparadas por duas mulheres, com o ventre comprimido pela grande faixa de pano. A partir do primeiro minuto da sua vida, os homens começavam a pertencer à extensão sem limites, à areia, aos cardos, às serpentes, aos ratos, ao vento sobretudo, pois era essa a sua verdadeira família. As meninas de cabelo cobreado cresciam, apreendiam os gestos sem fim da vida (…). Os rapazes aprendiam a andar, a falar e a combater, simplesmente para aprenderem a morrer na areia.


Também o silêncio domina a paisagem do deserto, incitando à introspecção, à meditação e à oração, de forma a diminuir um pouco a distancia entre o homem e a divindade.

A descrição de um local de culto no deserto, um simples túmulo cavado na rocha, serve para retemperar as forças e a esperança, como local de refúgio contra a mordedura impiedosa do sol na pele durante o dia e a omnipresença do gelo à noite. O silêncio que envolve o lugar permite por si só serenar as angústias, sofridas no caminho pelas intempéries.

Era o silêncio, talvez, vindo do deserto, do mar das dunas, das montanhas de pedra de claridade lunar, ou então das grandes planícies de areia cor-de-rosa, onde a luz do sol dança e ondula, como uma cortina de chuva: o silêncio dos buracos de água verde, que contemplam o céu como olhos, o silêncio do céu sem nuvens, sem pássaros, onde o vento é livre.

(…) Já não havia sofrimento, nem desejo, nem sequer vingança. Esquecia tudo, como se a água da oração lhe tivesse lavado o espírito.

A colisão de interesses dá-se pela batalha pela posse do território entre os habitantes locais e os colonizadores europeus:

Os outros xeques os chefes da grande tenda e os guerreiros azuis vieram todos, um após o outro (…). Falavam dos cristãos que entravam no oásis do sul e que levavam a guerra aos nómadas. Falavam das grandes cidades fortificadas que os cristãos construíam no deserto. E que fechavam o acesso aos poços até às margens do mar.

A miséria e tragédia que se abate sobre os povos do deserto, a par de uma incomensurável vontade de se agarrar à vida são o que lhes permite continuar vivos. As páginas e páginas de invocação de Ma el Ainine à Divindade são revelam, por sua vez, do desespero e a tenacidade de quem se recusa a deixar-se morrer.

A protagonista do tempo presente, Lalla descendente destas tribos de nómadas, possui a mesma nobreza tenacidade dos seus antepassados e ao mesmo tempo desprende-se dela a capacidade de enfeitiçar aqueles com quem se cruza. Tanto no deserto como nas cidades europeias, onde impera o medo em relação aos estrangeiros e onde aquele que é diferente leva a marca da exclusão. Lalla consegue escapar a este estigma, porque a luz sobrenatural da dunas solta-se-lhe do olhar e da pele…

Lalla está condenada a viver entre os dois mundos, entre o mar e as dunas. E é neste limiar e na costa mediterrânica do Norte de África que Lalla decide dar à luz o filho de Artani, fruto de um amor adolescente. Do jovem semi-selvagem que vive uma vida de errância que ela espera um dia poder acompanhar.

Em plena liberdade.


Cláudia de Sousa Dias

Monday, April 19, 2010

O Amante do Vulcão de Susan Sontag (Quetzal)



Segundo Enric González (Visão 7 de Agosto de 2003) "Susan Sontag não se entusiasma com o termo «intelectual» que é o que melhor a define. De qualquer modo, é autora de quatro romances, dezenas de ensaios, milhares de artigos e vários filmes. Abordou todos os problemas comtemporâneos e faz parte da Academia dos EUA. Nesse ano, recebeu o Prémio Príncipe das Astúrias de Letras pela sua «profundidade de pensamento e qualidade estética».


Foi casada com um professor de Sociologia, venceu por duas vezes o cancro e viveu de perto guerras como a do Vietname, do Yom e da Bósnia vindo a falecer em Dezembro de 2004.Trata-se uma mulher dos nossos dias que se atreveu a criticar, de forma igualmente contundente e implacável, George W. Bush e Fidel Castro. Alguém que, sendo de origem judia, declarava-se «200% laica» e que, relativamente à questão israelo-palestiniana considerava que «a tragédia consiste no facto de as duas partes estarem igualmente equivocadas.»"


O Amante do Vulcão é um retrato de uma época conturbada, uma obra de ficção que conta com personagens verídicas caricaturadas e uma heroína portuguesa, cujo nome se encontra, normalmente, ausente nos compêndios escolares de História de Portugal.


Nápoles, 1772. A população vive ao ritmo das erupções do Vesúvio, em contacto com as ruínas que evocam o passado de Pompeia. No entanto, outro género de cataclismo faz tremer os detentores do poder numa cidade cuja paisagem é dominada pelo mítico habitat do deus Vulcano: a difusão dos ideais da Revolução Francesa. O receio do impacto das ideias revolucionárias nas classes mais desfavorecidas, desencadeia uma onda de repressão por parte das autoridades de Nápoles.Usando o seu acutilante e perspicaz sentido crítico, Susan Sontag faz uma caracterização realista de algumas figuras históricas da época, ao desmantelar a faceta mítica e heróica de personagens como Napoleão, Lord Nelson, Sir William Hamilton (famoso coleccionador e comerciante de obras de arte britânico) e sua mulher Emma (amante de Lord Nelson), bela, inteligente e inculta.


Em O Amante do Vulcão ficamos a saber qual o papel, o grau de influência do Barão Scarpia (tornado mundialmente célebre através da ópera Tosca de Puccini) e, curiosamente, assistimos ao emergir do reino das sombras, de uma heroína portuguesa: Leonor da Fonseca Pimentel. Trata-se da única personagem do livro que não é ridicularizada pelas célebres alfinetadas verbais de Sontag. Leonor Pimentel, poetisa, jornalista, foi uma mulher ...ardente, veemente, que não compreendia o cinismo, queria que as coisas fossem melhores para mais do que uns poucos.


Alguém que no sécculo XVIII defendeu a importância da educação, ao mostrar não haver diferença entre capacidade intelectual masculina e feminina: ...sentia-me feliz por poder esquecer que não era mais que uma mulher. Era fácil esquecer que era, em muitas das nossas reuniões, a única mulher. Queria ser pura chama.


Leon o r da Fonseca Pimentel poderia ter vivido no Sec. XXI. Uma (quase) esquecida heroína portuguesa.



Cláudia de Sousa Dias

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Tuesday, April 13, 2010

“A Lista de Schindler” de Thomas Keneally (Ed. Notícias)



Thomas Michael Keneally (1935), de origem Irlandesa, cresceu na Austrália encontrando-se, actualmente, a viver em Sidney. Da sua bibliofrafia constam títulos como The Chant of Jimmie Blacksmith, Confederates (que o levou a empreender uma exaustiva investigação da História doa Estados Unidos no século XIX). Schindler's Ark - o título original do romance que aqui tratamos - esteve na base da adaptação cinematográfica de Steven Spielberg com o título Schindler's List (A Lista de Schindler).
Thomas Keneally foi finalista do Man Booker Prize em 1975 e 1979, vencendo apenas em 1982, precisamente com A Lista de Schindler.

A ideia para a construção deste romance, implicou uma a reconstituição exaustiva do período que mais marcou a humanidade na conturbada história do século XX. O projecto surgiu durante um passeio turístico aos Estados Unidos, durante a qual foi ter a uma loja de malas em Beverly Hills, cujo proprietário era, nem mais nem menos, do que um dos sobreviventes de Schindler. A base do romance surge-nos, então, através de um primeiro relato de Leopold Pfeferberg, uma das personagens da trama.

A partir daí, o autor travou uma autêntica odisseia em busca dos restantes elementos da referida “lista”, um pouco por todo o Globo. O relato de Keneally acerca do período áureo do empresário Oskar Schindler, baseia-se em entrevistas a cinquenta sobreviventes dos trabalhadores da Emalia ou Emailwarenfabrik que, na altura, se encontravam distribuídos por cinquenta países diferentes: Austrália, Israel, Alemanha Federal, Áustria, Estados Unidos e Brasil.

A estrutura romanesca da obra adequa-se à magnitude de uma personagem cujo carisma acabou por transformá-lo numa figura lendária. A capacidade demonstrada por Schindler em cativar, a facilidade em estabelecer amizades e uma extraordinária capacidade de comunicação parecem ter sido os ingredientes que, combinados com um temperamento hedonista e uma boa dose de astúcia, parecem ter resultado numa atraente combinação de amoralidade e generosidade à qual se misturam uma pitada de oportunismo e um temperamento dotado de um incomensurável pendor humanista.

Os diálogos foram objecto de reconstruções ou recriações plausíveis, tendo por base fragmentos recolhidos a partir das recordações dos Schindlerjuden.

A acção desenvolve-se em várias cidades do Leste Europeu, como é o caso de Cracóvia, na Polónia, cidade onde Schindler instala a sua Emalia; em Plaszów, o campo de trabalho de Amon Göeth; em Zablocie, mais propriamente na Rua Lipowa – o gueto onde se concentravam os judeus da cidade, obrigados a deslocar-se em transportes públicos, destinados exclusivamente a esta etnia, para trabalharem na fábrica de Schindler; em Auschwitz- Birkenau, o campo de extermínio onde, devido a um mal-entendido burocrático, vão parar alguns dos trabalhadores de Schindler; em Brinnitz, na Checoslováquia, para onde é trasladada a Emalia já durante o recuo alemão nos territórios ocupados no leste, de forma a fugir ao ataque das legiões comandado por Estaline.

O autor, para além dos relatos dos sobreviventes, socorre-se também, de provas documentais: filmes, documentários e documentos em papel originais, da época.

A hitória inicia com um prólogo que consiste na descrição de numa fase mais avançada da narrativa (prolepse), em 1943, regressando depois a 1939, no primeiro capítulo. O seguimento da narrativa prossegue, depoisn de forma linear até ao final da guerra e termina com um epílogo, à laia de conclusão, com a morte de Schindler em 1974 (curiosamente no ano em que Portugal cai o regime fascista).
A tonalidade impressa no discurso narrativo é quase a de um relato jornalístico ou crónica. Revela, no entanto, algumas marcas literárias: o autor recorre frequentemente à ironia ou ao humor apimentado e seco tipicamente alemão, quase sempre de teor sexual, com que inicia logo o primeiro capítulo no diálogo entre Schindler e o motorista:

- Cuidado com o piso Herr Schindler – disse o motorista - . Está tão gelado como o coração de uma viúva.


Personagens Principais

Schindler surge-nos, logo na primeira entrada em cena, como um homem acessível, a quem o motorista tem o à vontade suficiente para contar, sem perigo, uma anedota, como se fossem camaradas.
Existem, também, ao longo da obra, vários aspectos susceptíveis de torná-la adaptável ao grande écran. Por exemplo: o autor mostra ter-se deparado com a difícil missão de, em literatura, escrever sobre a virtude de um ser humano em particular, preferindo optar pelo seu significado literal, vindo do latim (Virtus = coragem), ao invés de incidir no significado atribuído pelo senso comum (bondade, castidade) ou sobre apenas a maldade humana, isto é, os “pecados” da História. Sobretudo porque Oskar Schindler não seria um homem virtuoso no sentido convencional do termo – não era casto, nem santo, nem ingénuo; gostava de mulheres, gostava de beber. Tinha duas amantes fixas, apesar de estar casado com Emilie: Ingrid, a cantora alemã e Vitória Klonowska, a fiel secretária polaca.

Era um grande amante e um grande bebedor: fazia-o socialmente, com os funcionários públicos, sócios ou burocratas e fazia-o por prazer, como na cena passada no café, onde reuniu as pessoas de quem mais gostava para uma agradável noite de pândega.

Era, também uma grande fumador, mas “controlado” (…) Era uma homem calmo. As mãos nunca denotavam tensão. Era elegante.

O sentimento de Oskar em relação a alguns SS em particular era o de um desprezo sociável e cordial por não lhes apreciar a “destemperança”.
As origens de Schindler explicam, em grande parte, o seu carácter: vindo de uma família de classe média alta e da alta burguesia da Boémia (Checoslováquia), Schindler foi, durante a juventude, o típico playboy, tornado popular pela exibição dos mais actuais – para a época – veículos de duas e quatro rodas, participando em competições, ao lado de pilotos de vanguarda europeus, durante o interregno entre as duas Grandes Guerras. O desejo de ultrapassar o pai no que respeita ao sucesso como empresário, acusando-o de perdulário e culpando-o pelo divórcio cegava-o, a ponto de não conseguir perceber que geria a sua própria vida exactamente da mesma forma.

Herr Schindler pai, durante os momentos que se seguem à reconciliação com o filho no café, incitado por vários amigos, alerta o filho para o descalabro em que se pode tornar a sua relação com figuras ligadas ao partido nazi:

O destino, dizia Herr Schindler, não era uma corda sem fim. Era um pedaço de elástico. Quanto mais se avançasse, mais violentamente se era atirado para trás, para o ponto de partida. Era isso que a vida, um casamento fracassado e a crise económica, haviam ensinado a Herr Schindler.

Trata-se de palavras sibilinas e subliminares que, provavelmente, ficaram no subconsciente do filho e o levaram a considerar sempre os dois lados da questão nazi e a ter constantemente o cuidado de não humilhar nenhum dos lados.

Itzahk Stern é uma personagem chave no romance e na vida de Shindler. Foi um dos seus maiores aliados e a peça fundamental que o ajudou a arquitectar todo o edifício da Emalia, no sentido de ser uma cobertura de uma das mais importantes bolsas de resistência e de acolhimento a refugiados cujo destino seria provavelmente um campo de extermínio. Stern começa por estabelecer com Schindler uma cautelosa relação profissional. É perito em contabilidade e finanças, um ex-empresário, cujos bens foram expropriados e confiscados pelo estado alemão e cuja competência o coloca a serviço de Oskar.
O ex-empresário judeu consegue, no entanto, detectar o imenso potencial humano, sob a aparência de frivolidade, que é espírito de solidariedade de Oskar Schindler. Ambos gostavam de se entreter a discutir religião comparada apesar de Schindler não ser nem filósofo nem erudito.

Detestaria ser padre, acrescentou Herr Schindler, numa era como esta, em que a vida vale menos do que um maço de cigarros. Stern concordou mas, dentro do espírito da conversa, sugeriu que a referência que Herr Schindler fizera à Bíblia poderia ser resumida por um verso do Talmude que dizia que aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro.
- Claro, claro – disse Oskar Schindler.
Com razão ou sem ela, Itzahk sempre acreditou que fora nesse momento que lançara à terra a semente certa.

Com Vitória Klonowska, Schindler mantém, durante largos anos, uma relação híbrida de amante e laboral, período após o qual esta se metamorfoseia numa sólida amizade.

Victoria Klonowska, uma secretária, polaca, era a beleza do escritório principal de Oskar, que iniciou imediatamente um longo caso amoroso com ela. Ingrid, sua amante alemã, deve ter sabido disso, tal como Emilie Schindler sabia da existência de Ingrid, pois Oskar recusar-se-ia sempre a ser um amante sub-reptício. Em relação à sua vida sexual revelava uma fraqueza infantil. Não era que se gabasse. Só que nunca via necessidade de mentir, de entrar furtivamente nos hotéis pelas escadas das traseiras, de bater discretamente à porta de qualquer rapariga, a altas horas da noite. Uma vez que Oskar não fazia qualquer tentativa séria de contar mentiras à suas mulheres, as opções destas ficavam reduzidas: era difícil travar as discussões típicas dos amantes.

Já o anti-herói, o Hauptsturführer Amon Goeth, manifesta o comportamento oposto em relação às mulheres, gostando inclusive de recorrer à violência física como forma de excitação. Excessos e sadismo parecem ser as principais marcas da personalidade deste capitão das SS.

Como superior de Goeth, Scherner poderia ter ordenado a Goeth que deixasse de espancar a rapariga. Mas isso teria sido um comportamento errado, teria estragado as divertidas festas na moradia de Amon. Scherner ia lá, não como superior hierárquico, mas sim como amigo, sócio, galanteador e apreciador de mulheres. Amon era um tipo estranho, mas ninguém organizava festas como ele.

Em termos físicos Goeth está quase ao nível de Schindler, mas rodeado de uma certa aura de escuridão, o que faz entrever as nuances mais sinistras da sua personalidade, camufladas por uma delicadeza que encantava a quem queria cativar. Era tão calculista e encantador quanto Schindler, mas o encanto era dirigido apenas a quem admirava, sendo desprovido de qualquer sentimento de compaixão.

O rosto de Goeth era aberto e agradável, um pouco mais comprido do que o de Schindler. As suas mãos, apesar de grandes e musculosas, tinham dedos esguios. Era sentimental em relação aos filhos, os filhos do seu segundo casamento, os quais, por causa de estar de serviço no estrangeiro, não vira com assiduidade durante os últimos três anos. Para compensar, era por vezes atencioso com os filhos dos seus camaradas. Também podia ser um amante sentimental mas embora se assemelhasse a Oskar em termos de voracidade sexual geral, os seus gostos eram menos convencionais, abrangendo por vezes os seus camaradas masculinos das SS e, com frequência, o espancamento de mulheres.

(…)

Mas o elitismo nazi de Goeth mostra-se em toda a sua plenitude no relato da morte de Diana Reuter.

Pela forma como ela caminhou para junto dele, Amon conseguia aperceber-se da elegância falsa com que seus pais, de classe média, a tinham criado, os modos europeus que lhe tinham inculcado, mandando-a – quando os polacos honestos não a aceitavam nas suas universidades - para Viena ou Milão para lhe darem uma profissão e uma colocação mais protectora. Dirigiu-se a ele como se a sua posição e a dele os juntassem numa batalha contra sargentos aparvalhados e a mestria inferior com que qualquer engenheiro das SS supervisionara a abertura dos alicerces. Não sabia que era aquilo que ele mais odiava – o tipo de pessoa que pensava que, mesmo contrariando a evidência do seu uniforme das SS, daquelas estruturas que estavam a erguer-se, não eram visíveis as suas características judaicas.


A corrupção em tempo de crise

Os subornos são outra questão exaustivamente descrita n’A Lista de Schindler. Estes são utilizados sobretudo com alguns elementos das SS, especialmente ávidos de ouro, jóias, obras de arte e géneros alimentícios ou de consumo que rareavam na época e só se conseguiam obter no mercado paralelo. Os bens essenciais como o pão, o café ou ainda artigos de vestuário de qualidade eram, também, muito cobiçados. O funcionalismo público, o staff que servia de suporte ao nacional socialismo era, também, frequentemente objecto de suborno, principalmente em situações que implicavam o eliminar de barreiras burocráticas. O mesmo processo era, também, aplicável aos membros mais venais do Exército da Abwehr e da Força Aérea, a Wermacht.

Oskar lembrara-se do chefe da polícia no último Natal, enviando-lhe meia dúzia de garrafas de conhaque. Agora que o poder do homem aumentara, no próximo ano o presente seria ainda maior.

(…)

O Guetto: protecção ou matadouro?

O sentimento acerca da construção do guetto na Rua Lipowa, em Cracóvia, não foi, inicialmente, mal-vista pela população judaica da cidade. Os judeus de Cracóvia sentiam-se, na sua maior parte, mais resguardados do ódio em geral, quer dos militares quer das populações locais.
A mudança de opinião dá-se ao tomarem consciência das condições de acondicionamento: não só em termos de espaço, mas no que toca ao fornecimento de água e ausência de saneamento. Além que a aglomeração torna-os num alvo fácil durante os massacres, seguidos da rapina, imediamente após o extermínio. Um dos aspectos que confere o carácter de fidedignidade e fialidade à obra é que os relatos destes sobreviventes de Schindler não escondem, também, a venalidade na actuação de membros dos Judenraten, em franco colaboracionismo com autoridades alemãs.

Oskar ficou a conhecer bem uma nova figura, um antigo vidraceiro chamado Symche Spira, o novo homem forte da OD. Spira provinha de meios ortodoxos, tanto por razões que se prendiam com a sua história pessoal como de temperamento, desprezava os judeus liberais e europeizados que faziam parte do Judenrat. Recebia ordens não de Artur Rosenzweig mas do Untersturmführer Brandt e do quartel general das SS que ficava do outro lado do rio.
(…)
O seu uniforme deixou de ser o boné e a braçadeira, que foram substituídos por uma camisa cinzenta e calções de cavalaria, um cinturão e reluzentes botas de SS.
A secção política de Spira iria muito para além do que uma cooperação de má vontade exigia; estava pejada de homens venais, com complexos, cheios de um ressentimento já velho por causa das desconsiderações sociais e intelectuais que lhes haviam sido infligidas, noutros tempos, por membros respeitáveis da classe média judia.
(…) Iniciaram uma carreira de extorsões e de elaboração de listas, para as SS, onde constavam o nomo dos residentes do guetto que consideravam insatisfatórios ou sediciosos.

O vermelho da solidariedade: o grito de guerra contra a indiferença

A cor vermelha é por si só, reaccionária, incitando ela própria à acção. E, no livro de Keneally e, também, no filme de Spielberg, a criança de vermelho desempenha um papel que se reveste de uma carga simbólica muito forte – o vermelho é a cor da solidariedade, da fraternidade. A cor vermelha é um elemento chave do romance por estar directamente ligada à faceta da personalidade de Schindler, a compaixão e generosidade, que explica o seu comportamento nos capítulos que se seguem ao seu aparecimento, durante uma rusga na Rua Lipowa, que termina com um massacre. Genia, a criança de vermelho que chama a atenção, primeiro pela cor com que se veste e, depois, pelo seu ar inofensivo e desprotegido, consegue despertar a tomada de consciência relativamente às proporções que está prestes a atingir aquilo que Oskar encarava até ali como uma “loucura colectiva temporária”.

A criança chegara a casa dos Dresdner, no lado oriental do guetto, ao final da tarde. Fora trazida de volta para Cracóvia pelo casal polaco que estivera a tomar conta dela, no campo. Tinham conseguido convencer a Policia Azul polaca, junto do portão do Guetto, a deixarem-nos entrar para negócios, e a criança entrou como sendo deles.
Eram pessoas honestas e sentiam-se envergonhados por a terem trazido do campo, para Cracóvia e para o guetto. Era uma rapariguinha encantadora; estavam ligados a ela. Mas já não se podia ter uma criança judia na província.
(…) A criança não parecia sofrer grandemente com as imundícies que o guetto agora lhe impunha.
(…) A senhora Dresdner reparou quão estranhamente contida a criança era nas suas respostas. No entanto, tinha as suas vaidades e, como a maioria das crianças de três anos, uma cor que preferia com paixão. Vermelho. Ficava ali sentada, com um boné vermelho um casaco vermelho, pequenas botas vermelhas. Os camponeses tinham-lhe satisfeito a paixão
.

A criança de vermelho ilumina o romance como a chama de uma vela, brilhando no meio do cinzentismo e da escuridão de uma população conivente, colaboracionista, passiva. Ao vermelho ninguém consegue ficar indiferente. O vermelho é o elemento que sinaliza a extensão do grotesco que é a desumanidade que por vezes se manifesta nas formas mais impiedosas de canibalismo, mostrando o Homem como o mais terrível dos predadores em relação a si mesmo. Genia, com a sua indumentária e o seu ar perfeitamente inofensivo é o cordeiro sacrificial que ilumina, aos olhos de Oskar enquanto passeia a cavalo com Ingrid, no alto da colina por sobre a Rua Lipowa, o eficiente massacre orquestrado pelos SS (capítulo XV).

A criança é, para Schindler, o Arcanjo que lhe sopra a trombeta do Apocalipse directamente para o ouvido. O Inferno do Armageddon começa a partir do massacre na Rua Lipowa, como se vê no trecho que se segue:


Mas nesse Junho, todos os piores sonhos e boatos assumiram uma forma concreta e o boato mais inimaginável tornou-se realidade.
(…)

Enquanto se cavalgava ao longo do cume das colinas, ia-se revelando o mapa do guetto e podia ver-se, à medida que se passava por elas, o que estava a acontecer nas ruas, lá em baixo.

(…)

Ingrid e Oskar detiveram os cavalos à sombra das árvores e observaram atentamente, começando a aperceber-se dos pormenores da cena. Homens da OD, armados com bastões, colaboravam com as SS. Alguns daqueles polícias judeus pareciam cheios de entusiasmo, pois, ao fim de poucos minutos de observação, a partir das colinas, Oskar já vira três mulheres relutantes a serem espancadas nas costas. De início sentiu uma ira ingénua. As SS estavam a utilizar judeus para açoitar judeus. No entanto, ao longo do dia, viria a tornar-se claro, que alguns dos OD batiam nas pessoas para se livrarem de coisas piores.
(…)
Schindler reparou também que na Rua Wegierska, se estavam a formar continuamente, duas filas.

(…)

À medida que as pessoas eram arrancadas de dentro dos apartamentos, eram separadas à força nas duas filas, sem atender a considerações de família.

(…)

Uma fila de mulheres e crianças, não tão comprida estava a ser conduzida em direcção à Rua Piwna. Um guarda seguia à frente e outro à retaguarda. Havia um desequilíbrio na fila: encontrava-se nela muito mais crianças dos que as mulheres nela incluídas poderiam ter gerado. No final, saltitando, seguia uma criança de tenra idade, rapaz ou rapariga, vestida com um pequeno casaco e um boné escarlata. A razão porque atraiu a atenção de Schindler foi porque dizia alguma coisa, tal como acontecera com o operário que discutia na Wgierska. É claro que essa afirmação estava relacionada com uma paixão pelo vermelho.
Enquanto observavam o homem das Waffen SS que seguia na cauda da coluna estendia de vez em quando a mão e corrigia a trajectória daquela protuberância vermelha. Não o fazia com brusquidão – podia ser o seu irmão mais velho.
(…)

MAS foi um conforto fugaz porque, atrás da coluna que partira, com as mulheres e crianças, a que a criança de vermelho dava um toque expressivo, equipas de SS com cães entravam em acção a norte, ao longo dos dois lados da rua.

Entravam de rompante pelos apartamentos fétidos (…). E, correndo à frente dos cães, homens, mulheres e crianças, que se tinham escondido em sótãos e armários, dentro de cómodas sem gavetas, os que haviam escapado à primeira vaga de buscas, saíram pela rua, aos trancos e barrancos, gritando e arfando devido ao terror provocado pelos dobermann.
(…) Os que saíam eram abatidos no local onde paravam, no passeio, voando por cima das valetas devido ao impacte das balas, espirrando sangue para os esgotos.

(…) Schindler sentiu um medo intolerável por eles, um terror no seu próprio sangue que lhe afastou as coxas da sela e ameaçava fazê-lo cair do próprio cavalo.
(…)
Os seus olhos subiram a Krakusa até à criança de escarlate. Estavam a fazer aquilo a menos de meio quarteirão dela: não tinham esperado que a sua coluna desaparecesse da vista, na Josefinska. (…) Enquanto a criança de escarlate parou, na sua coluna, e olhou para trás, deram um tiro no pescoço da mulher e, um deles, quando o rapaz deslizou ao longo da parede, choramingando, calcou-lhe a cabeça com uma bota, como se pretendesse com isso mantê-lo quieto, e encostou-lhe o cano da arma à nuca – a posição recomendada pelas SS – e disparou.
Oskar procurou de novo a rapariga de vermelho. Parara, virara-se e vira a bota descer. Já aumentara a distância entre ela e o resto da coluna. Uma vez mais, o guarda das SS corrigiu-lhe a trajectória fraternalmente, empurrando-a de volta para a fila. Herr Schidler não conseguia compreender por que razãi, não lhe batera com a coronha da espingarda, dado que na outra extremidade da Rua Krakusa a piedade fora abolida.
(…)
Sabia que não tinham vergonha, uma vez que o guarda que se encontrava na retaguarda da coluna não sentira qualquer necessidade de impedir que a criança de vermelho de presenciar tais coisas. Mas, pior do que isso, se não havia vergonha, havia aprovação oficial. Agora já ninguém podia encontrar refúgio atrás da cultura alemã, nem por detrás das afirmações proferidas pelos dirigentes para evitar que os homens anónimos saíssem dos seus jardins, olhassem através das janelas dos seus escritórios e vissem as realidades dos passeios. Na rua Krakusa, Oskar vira uma demonstração da política do seu Governo que não podia ser ignorada, como se de uma aberração temporária se tratasse. Oskar tinha firme convicção de que os homens das SS estavam a cumprir as ordens do chefe, porque de outro modo, o homem que seguia na retaguarda da coluna não teria deixado que a criança olhasse
.


O episódio culmina com a dramática cena de eutanásia, aplicada aos doentes terminais a escassos minutos antes das SS invadirem o Hospital para a operação de “limpeza”, lembrando o acontecido na meseta de Masada, no tempo do Imperador Adriano.

O Homem como valor económico, desprovido do seu valor intrínseco

A Emalia, a fábrica de trens de cozinha e loiças de Schindler, é considerada um refúgio para os que nela trabalham, já que o patrão consegue convencer as SS e o Governo de que a sua indústria é essencial para a economia de guerra. Os seus trabalhadores, segundo eles altamente especializados e qualificados, possuem o Blauschein – o cartão azul – que os classifica como trabalhadores essenciais e os impede de irem para os campos de morte. Este é um tempo onde o homem, sobretudo se for judeu, não vale por si mesmo mas pela sua utilidade e pela capacidade de converter a sua força de trabalho em dinheiro para usufruto exclusivo daqueles que vivem à custa do seu trabalho. Os direitos dos trabalhadores esfumam-se e passam a ser considerados uma utopia. A palavra de ordem é a do extermínio de todos aqueles que não possuem valor económico: os mais frágeis. Ou os inúteis. Dentre eles, os deficiente, os doentes, os idosos e as crianças que não tem ainda força para trabalhar. E também os artistas e intelectuais. A não ser que façam a apologia do sistema e da ideologia vigentes.

Após o massacre, a entreajuda entre Schindler e Stern desenvolve-se e Oskar passa a colaborar sim, mas com a Resistência, que se ramifica pela Europa, muito para além dos limites da Polónia.
Schindler passa a afirmar ao seus companheiros: Conheces aquele Amon Goeth. Tem encanto. Podia vir aqui agora e encantar-te. Mas é louco.

Para além de Schindler, os judeus de Cracóvia contam ainda com a ajuda, embora mais discreta, de outro empresário que está nas boas graças do regime Nazi: Raimond Titsch, o industrial amigo de Oskar. Titsch empreendeu também, ao longo dos anos de guerra um “trabalho” com os judeus muito semelhante ao de Schindler, apesar de não chegar a expor-se tanto como este, que chega ao ponto de conseguir arrebatar Helen Hirsch das garras de Goeth recorrendo a um truque aparentemente frívolo como uma aposta.


Titsch empenhou-se em fotografar profusa e detalhadamente, o campo de concentração de Goeth, constituindo assim um vultuoso acervo de provas documentais. O pós-guerra passou-o na quase total obscuridade, por medo de represálias, desconhecendo-se o seu paradeiro.


O livro de Keneally deixa claro, também, até que ponto existiu uma aliança entre a Alemanha nazi e a Ucrânia.


Amon Goeth é mais tarde preso, ainda durante a guerra, pelas SS, acusado de peculato, mas só no pós-guerra é acusado e condenado por genocídio.
Segundo o Autor e os relatos dos sobreviventes, a ausência de sanidade mental daqueles que chefiavam as SS, está patente na minúcia dos processos ultra-sofisticados de extermínio, cuja despesa astronómica era de todo incompatível com uma economia de guerra. Para Schindler, Titsch e Stern o anti-semitismo teria muito menos a ver com razões económicas do que com razões psicológicas.

O mundo de Auschwitz é descrito como se fosse uma visita a um outro planeta, um mundo à parte totalmente incompatível com a nossa realidade quotidiana.

De entre todo este cenário, o Oskar Schindler deste romance aparece-nos como um mestre do bluff e do malabarismo psicológico utilizado de forma altruísta e aparentemente regido por motivações emocionais.


Se os motivos que estiveram na base desta conduta foram altruístas ou não isso será, talvez, o que menos importa discutir nos dias de hoje, dado que houve depois nas décadas que se seguiram, toda uma geração que descendeu até aos nossos dias, dos Schindlerjuden, espalhados pelo mundo.

O final do romance mostra que a personalidade de um Oskar Schindler nunca lhe permitiria obter o nível de riqueza incomensurável de que usufruiu sem ser numa economia de guerra, mas o facto é que esta foi delapidada na totalidade, sem olhar a meios para conservar vidas humanas. O que desculpa sem dúvida toda e qualquer pecadilho de cupidez. Lamentamos que Oskar Schindler não tenha sido clonado. Sobretudo nos tempos que correm.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, April 07, 2010

"A Ilha dos Jacintos Cortados" de Gonzalo Torrente Ballester (Difel)




Vindo de um escritor maior, da mais elevada craveira da expressão literária da Galiza que, em vida, nutriu um especial carinho pelos autores portugueses, Gonzalo Torrente Ballester deixa-nos mais um livro de qualidade superior, tanto no que diz respeito à complexidade da trama propriamente dita, como no rendilhado da prosa.


Ballester é um autor cuja prolífica actividade literária se divide por vários géneros: romance, ensaio (decorrente da sua actividade como docente) e crítica literária.Trata-se de um escritor de grande versatilidade temática cuja prosa foi considerada como sendo "de carácter intelectual, por vezes difícil.

A Ilha dos Jacintos Cortados é uma inteligente sátira social e histórica, onde os jacintos cortados representam, nada mais nada menos, que as vítimas da repressão face à liberdade de pensamento, de expressão, sexual...um romance onde se misturam realidade e fantasia, amor, erotismo e melancolia mas que se reveste, simultaneamente, de um erotismo que é, segundo os críticos, "isento de pornografia", que se conjuga com um estado de alma do narrador caracterizado por uma "melancolia sem sentimentalismo".


O foco central do romance é um amor não correspondido de um genial professor de literatura, de origem espanhola, numa universidade nos Estados Unidos pela bela e inteligente Ariadne, namorada de um não menos brilhante colega do nprotagonista que acumula, também, o papel de narrador. Ao conhecer a bela jovem de ascendência grega, o professor, de ardente temperamento latino, típico da Europa mediterrânica, não resiste a fantasiar e divagar, inventando um amor impossível pela encantadora Ariadne.


Esta característica parece fazer parte integrante do carácter desta personagem uma vez que, sempre que encontra uma mulher bela e intelectualmente dotada, tenta, invariavelmente, encontrar nela a mais pequena sombra de infelicidade e, simultaneamente, exagerar ao máximo os defeitos do respectivo objecto amado. A partir do momento em que constróiu a sua paixão por Ariadne decide escrever os seus cadernos durante a estadia outonal numa pequena estância de férias, isolada do resto do mundo. O romance é composto por cartas de amor de uma beleza ímpar, intercaladas com viagens a uma outra época histórica (a Revolução Francesa), usando o fogo ou os espelhos como veículo de transporte. Ariadne será doravante o fio condutor entre passado e presente, entre o mundo real e o onírico, tal como a homónima personagem do episódio do labirinto de Creta que conhecemos da mitologia clássica. O raciocínio do narrador está longe de ser linear, sendo, pelo contrário, recheado de meandros e tão vertiginoso como uma montanha russa.


Ao discurso poético do tempo presente opõe-se uma refinadíssima ironia aplicada quer às personagens históricas do passado quer às fictícias. Sobretudo quando se refere às Parcas (figuras mitológicas que decidiam o destino dos homens), guardiãs da moral e bons costumes, que se dedicam a espiar as relações ilícitas dos habitantes da Górgona ou Ilha dos Jacintos Cortados (ou castrados?) para depois denunciá-los às autoridades, numa época em que o adultério era punido com pena de morte.


A personalidade obsessiva, persuasiva e manipuladora do narrador impõe-se em ambos os planos, pois muitas das figuras que estão idealizadas no presente, surgem caricaturadas e com os defeitos exagerados sempre que efectua a regressão a épocas passadas. É assim que o impotente e complexado namorado de Ariadne aparece projectado na figura de Ascanio Aldobrandini, autoridade máxima da Górgona (mais uma figura castradora da mitologia clássica que transformava os homens que acontemplassem em pedra...) recalcado, mal-amado, traído pela mulher e pela amante...Da mesma forma, o amor platónico e a admiração pelas beldades cultas do presente, surge transfigurado em requintado erotismo e perversão nas figuras femininas do passado...com a sua máxima expressão na requintada festa erótica que reúne algumas das mais proeminentes personagens históricas da época como Chateaubriand ou o príncipe de Metternich...


Um livro genial porque invulgar, na forma escrita e na qualidade estilística da prosa e, por isso, comparável a alguns dos ícones da literatura universal doSec. XX. como, José Saramago ou António Lobo Antunes ou Jorge Luís Borges.


Provocador pela acutilância com que ataca tabus e falsos moralismos. Impiedoso na destruição de estereótipos e preconceitos.


Um livro para aqueles que não se contentam com lugares comuns...






Cláudia Sousa Dias

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