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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, June 15, 2009

“o remorso de baltazar serapião” de Valter Hugo Mãe (Quidnovi)


Com este romance que arrebatou o Prémio Saramago, Valter Hugo Mãe traça um retrato da época medieval, aproveitando para ir ao fundo da questão da violência doméstica e, ao usar do sincretismo estilístico que se exprime na reinvenção do léxico de forma a aproximar-nos de uma época tão distante em termos cronológicos e tão próxima em termos mentais, adapta, com invulgar mestria, o uso da ironia a uma parábola à violência doméstica.

As raízes de uma mentalidade falocrática que se estendem até às profundezas do subsolo de arquétipos culturais que parecem manter-se vivos até à actualidade do Portugal contemporâneo, em que morrem cerca de dez mulheres por ano, vítimas de violência doméstica, é o tema base que se pretende explorar no romance.

A intenção do autor, ao elaborar este romance, é a de proceder À demonstração de que, à necessidade de domínio, à qual está subjacente a violência, prende-se muitas vezes um doentio desejo de posse, que se alia ao ciúme patológico o qual acaba por atingir, não raro, proporções que caem no domínio da paranóia. E, daqui, nasce uma necessidade de submeter o Outro com o pretexto de o  “educar”, neste caso às mulheres, pelo medo.

o mundo que as mulheres imaginavam era torpe e falacioso, viam coisas e convenciam-se de estupidez por opção (…) cheias de vícios de sonhos como delírios de gente acordada como se (…) tivessem sido envenenadas por cobra má (…). Aos homens se pudesse ser dado maior ócio, alguma coisa boa ainda podia vir, como artes várias, destreza de pintura, por exemplo, mas às raparigas nada lhes dava o ócio, , mesmo para bordarem tão parecidas com estarem a fazer nada,, havia que lhes dar severas lições (…), de outro modo trocariam os pontos e os seus trabalhos seriam estropiados, sem beleza, ofensivos para a dignidade da mesa.

O mote para o desenvolvimento da narrativa prende-se com a citação de Jorge Melícias que ilustra os sentimentos e a forma de pensar de batazar serapião:

Há a boca pisada de pedras e o remorso
é uma parede mordida pelo eco
.

No que toca ao estilo, o texto, totalmente desprovido de maiúsculas, foi intencionalmente dotado com esta particularidade de forma a acelerar a leitura da narrativa, imersa em toda uma retórica de inspiração medieval, cujo arcaísmo exprime o pensamento das gentes simples. As mesmas gentes que atribuem uma explicação sobrenatural a tudo aquilo que não conseguem explicar, inclusive algumas marcas do raciocínio intuitivo, tradicionalmente atribuídas às mulheres.

A personagem feminina principal é Ermesinda, silenciada pela via do terror, que se exprime quee por via de ameaças verbais quer por torturas físicas.

No contexto social Idade Média, em que se desenvolve a acção, apesar da transversalidade que a transporta para a época contemporânea, a fêmea humana é equiparada a uma vaca ou sarga, animal que é o responsável pela alcunha da família, “os sargas”, os quais tratam a vaca como se esta fosse membro da família, inclusivamente melhor do que os membros femininos do mesmo agregado, uma vez que esta dá (ou já deu) carne e leite. A vaca-sarga torna-se, aqui a personificação da mulher desgastada pela extrema dureza das condições de vida a que é submetida. A mãe de Baltazar é, inclusive, tratada como um ser biologicamente inferior que só serve (ou serviu em tempos) para procriar.

a minha mãe não discernia senão sobre a lida da casa. estropiada do pé, pouco capaz de ver, ficara inutilizada para as coisas dos senhores (…), uma mulher é ser de pouca fala , como se quer parideira e calada (…) ajeitada nos atributos, procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar os filhos com os seus erros. também para não espalhar pela vizinhança a alma secreta da família, que há coisas do decoro da casa que se devem confinar aos nossos.

E, como se depreende pela leitura do parágrafo, o silêncio continua a ser, como sempre foi, o maior inimigo das mulheres. brunilde, a irmã de baltazar, sofre outro tipo de abuso: o assédio sexual. Vai trabalhar para os senhores, de quem a família é vassala, onde é abusada sexualmente. Resolve tirar proveito da situação mas, também, não estaria em condições de se negar aos favores do seu suserano.
brunilde aparenta, no entanto, uma submissão que lhe é útil para garantir a sobrevivência, ao servir-se do próprio poder sexual como um mero utensílio ou ferramenta de trabalho. Para Baltazar, inclusive, este saber começava a tornar-se suspeito: a brunilde achava que dom afonso era pouco competente e eu começava a desconfiar que alguém mais se punha nela, tão sabedora começava a soar.

Baltazar escolhe para esposa uma jovem totalmente diferente da irmã. ermesinda é dona de uma beleza radiosa, protegida pelos pais e, no limiar da adolescência, casa com Baltazar mal lhe vem a primeira menstruação.

a minha mulher haveria de ser ermesinda. eu sabia quem ela era (…). era filha de um pobre homem que o meu pai conhecia a vida toda. mais nova que eu dois anos, queriam casá-la para que se tivesse em honras antes que algum malandro lhe deitasse a mão.

Já aldegundes , o irmão mais novo, é um jovem cuja sensibilidade o prende à doçura do olhar de uma vaca, mais propriamente da sarga, responsável pela alcunha da família, sofrendo de forma atroz quando tem de se mudar – e à vaca – para alojar o casal.

Outro arquétipo feminino explorado é o da mulher que vive autónoma, mas que para tal utiliza a sexualidade à custa da qual sobrevive, mantendo um certo ascendente sobre a população masculina, graças à sua actividade: a prostituta teresa diaba.

a teresa diaba era quem vinha muito por mim isto é, era quem valia a baltazar para lhe satisfazer os apetites antes de casar com ermesinda.

parecia uma cadela no cio, farejando, aninhada pelos cantos das árvores e dos muros, à espera de ser surpreendida por macho que a tivesse. Era toda carne viva (…). abria-se como lençóis estendidos e recebia um homem com valentia sem queixa nem esmorecimento. era como gostava, total de fúria e vontade, sem parar, a ganir de prazer. (…) estropiada da cabeça, torta de braços, feia, ela só servia de mamas, pernas e buracos

A teresa diaba representa a atracção pelo grotesco, algo que não é preciso cuidar ou preservar. É com base nesta premissa que baltazar estropia mais tarde ermesinda. Para não ter de estar em cuidados quando está para fora, na esperança que ela não chame a atenção de eventuais predadores de beleza. No entanto, o ciúme patológico, a raiar a esquizofrenia, acaba sempre por enxergar pretextos para justificar o prolongamento dos maus tratos, mesmo após a beleza de ermesinda estar completamente destruída.

baltazar tem o comportamento modelado pela forma como o pai trata a mãe. Ignora, inclusive, o grave estado de saúde em que esta se encontra, com requintes de sadismo, levados até às últimas consequências:

o curandeiro, eu notei, sabia que ao meu pai aproveitava muito a tortice da minha mãe. com o pé a modos de pouco andar, ela havia de estar sempre por ali e mais que a faria do meu pai, pudesse acontecer um dia, à minha mãe não lhe valeria corrida alguma.

Enquanto isso a maior preocupação da família continua a ser a vaca…

o aldegundes pedia ao curandeiro pela sarga constantemente. que fosse a vê-la (…) se nos dissesse como engordá-la, ainda que as nossas rações fossem nenhumas de tanta pobreza
De onde a vaca acaba por tomar o lugar da mãe para os sargas.

o curandeiro farto de garantir que a minha mãe estava seca como uma pedra, impossível vir dali uma criança, bicho ou coisa. não pode vir nada, gritava (…) como arranjou estes filhos, conte-nos o senhor sarga, porque da sua mulher nem adianta pensar nisso (…)éramos filhos da sarga (…) éramos como filhos da sarga.

baltazar desenvolve a partir do modelo de conduta do pai um bestial complexo de Othello, ciúme, destituído de qualquer vestígio de fundamento, é ampliado pelo sucedido com Brunilde, que o leva a intimidar e a aterrorizar a esposa com o objectivo de a dissuadir de ser-lhe infiel – um dia. Tudo piora, quando dom Afonso, num rasgo de piedade, mostra interesse na presença de Ermesinda como serviçal na casa grande.

Aldegundes, apesar de alguma animalidade e de um profundo amor espiritual e físico pela vaca - ironia de que se serve, mais uma vez, o Autor para caricaturar a pseudo-virilidade lusitana - e, apesar de amante de uma vaca, é um homem com uma sensibilidade que lhe permite captar aquilo que a alma das pessoas tem de belo, através do talento como pintor, ao transfigurar as figuras humanas, envolvendo-as, simultaneamente, numa espécie de aura divina.

O “lado mau” da personalidade feminina está incarnado na esposa do senhor das terras a quem baltazar presta vassalagem, dona catarina. A maldade desta dama prende-se, não tanto com a questão de género, mas de classe. Dona catarina tem um ciúme tão doentio quanto baltazar mas, não podendo dirigir o seu ódio ao marido, que a humilha possuindo as servas, volta-o contra as criadas. Possui uma mente corrupta que a leva a cometer lenocínio, aquando da visita do rei, ameaçando as criadas com castigos corporais, caso algumas delas se recuse a aceder a algum pedido mais extravagante. A inveja, a cupidez e o ódio são as pulsões dominam o carácter particularmente azedo, consciente da impunidade desta personage,:

“…ouvi-o dizer da beleza de todas vós. servi-lo-eis se vos pedir, que ao rei não se recusa putice…” .

A temática das superstições medievais é, também, abordada na obra, tal como o receio popular do “mau olhado” e o recurso ao ocultismo e à feitiçaria, apesar de recearem, de alguma forma, as artes mágicas.

Uma figura feminina que tem tanto de interessante como de misteriosa é a da mulher queimada, que percebe das propriedades das plantas, para efectuar mezinhas e curar doenças, inflamações e dores musculares, embora não recuse também algum trabalho para afastar “males do espírito”.

“Sabe coisas de bruxa, a mulher queimada…”.

Esta mulher queimada que se depreende ter escapado aos maus tratos com a viuvez, tem como função na estória a de criar o contraste, marcando a diferença com a charlatã, em quem os irmãos “sargas” decidem confiar. Esta última, consegue extorque quase todo o dinheiro que os irmãs sargas possuem em troca de segredos que envolvem um estranho ritual que os afasta das pessoas, convencidas da sua insanidade mental ou de uma eventual possessão demoníaca...

Valter Hugo Mãe serve-se da personagem da mulher queimada, para dar, também, realce ao estigma social a que eram votadas as mulheres solitárias, detentoras de conhecimentos de botânica e das propriedades medicinais das plantas.

é que às mulheres deus dá conhecimento de algo que não dá aos homens.

Já para Baltazar …a mulher queimada ligava-se ao inferno, tinha domínios desnaturais a permitirem-lhe capacidades de mais proveito que a força de mil homens.

Ao regressar de uma visita à corte, juntamente com o irmão, baltazar encontra um jovem deficiente físico o qual acaba por juntar-se as dois irmãos.

Mas a forma como baltazar vê o corpo feminino não deixa de ser curiosa, como se admirasse a beleza de um animal que lhe é inferior:

As mulheres só são belas porque têm parecenças com os homens, como os homens são a imagem de deus. (…) se se parecessem mais com cabras do que com homens nem natureza para nós teriam precisão de nos parecer sem alcançar igualdade que para isso estamos cá nós.

Na corte, baltazar e aldegundes notam com estupefacção a ausência de loucos “de espírito”, isto é de doentes mentais, observando pelo contrário a presença de vários deficientes físicos.

tanta gente estropiada na terra de el-rei.

São ambos expulsos da corte por suspeita de acordo com o inimigo divino. Regressam à própria terra numa carroça onde “ajeitam os três cus”. Durante o trajecto de vota, baltazar especula acerca de como o amor se pode tornar uma armadilha:

expliquei ao dagoberto que o amor era uma maldade dos homens, assim como um plano esperto para fazer com que as mulheres se abeirassem deles e se mantivessem ali sem outro propósito senão ficar. O amor é uma maldade dos homens porque junta as mulheres aos homens numa direcção que só a eles compete (…) a maldade dos homens é igual à voz das mulheres.

A extinção de ermesinda, apresenta-se como uma conclusão inevitável, após os maus tratos e abusos sexuais sucessivos. É a alegoria ao inferno de muitas mulheres que vêm todos os anos engrossar o rio negro das vítimas da loucura dos homens.

completas seriam (as mulheres) se deus as trouxesse ao mundo mudas.

Na verdade em o remorso de baltasar serapião a violência extrema leva a consequências extremas:

afastaram-se da minha ermesinda que, imóvel, respirou menos, respirou menos, respirou menos, não respirou.

a sarga mugiu de modo lancinante.

Após o acto, a hybris e, a seguir, a impotência.

E, com o cair do pano, o remorso.




Cláudia de Sousa Dias

10 Comments:

Blogger P said...

Este vou ler em breve. Já andava com curiosidade e a leitura deixa-me curioso sobre a densidade das personagens, a forma como se articulam, o assumir dessa mundividência medieval. Excelente texto, Cláudia!

9:13 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

boa, Bau!

primeiríssimo a comentar!

parab éns pela coragem de ler um texto tão extenso como este...



:-)))


csd

12:29 PM  
Blogger Carlos said...

É um livro fantástico, que li, compulsivamente, numa tarde. Pessoalmente, considero-o superior ao último do Valter, "o apocalipse dos trabalhadores".

11:47 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

ainda não li o apocalipse. terei de fazê-lo durante este final de semana...

:-)))

"O remorso" é excelente, sem sombra de dúvida...


csd

10:35 AM  
Blogger Teresa said...

Cláudia, acabei de te atribuir um Prémio. Colhe-o aqui:

http://comlivros-teresa.blogspot.com/2009/06/premio-e-eleitos.html

Bjinhos
Teresa

2:24 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada, Teresa!

vou colar o prémio aqui no blog já daqui a bocado.

o valter vai estar presente na comunidade de leitores do repórter da Visão Miguel Carvalho, este Sábado, na Almedina do Arrábida Shopping. Se quiseres também estás convidada

:-)


um grande beijinho


csd

11:53 AM  
Blogger Maria said...

É o tipo de livro em que não pego... sou muito emotiva quando leio e este tipo de história deixa-me em farrapos.


beijos

1:10 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada, maria!


mas está de facto, muito bem escrito este livro do valter, sobretudo pelo facto de ridicularizar a violência masculina e dos motivos fúteis que estão na sua origem.

beijinhos


csd

1:01 PM  
Blogger Ferreiro said...

Parabéns pelo blog Cláudia. Apenas dois reparos. Ainda vou a meio do livro mas pelo que li, a vaca do "sargas" já não dá leite e é tão velha que já não serve para carne. Pelo menos assim o afirma baltazar (assim em minúsculas) no livro.
Em segundo lugar, não li o teu texto até ao fim porque estás a revelar pormenores que prefiro saber pelo livro. Sinopses demasiado longas estragam a surpresa a quem ainda está a ler.
Em todo o caso gostei da tua análise. Deve ser difícil para uma mulher ler este livro. Tanta violência. E pensar que ainda hoje há homens que pensam e agem assim.

12:42 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada. Vou ter em atenção a sugestão que me faz. Apesar de, este blogue estar mais vocacionado para análises e comentários do que para curtas sinopses. o objectivo é fomentar o debate, trocar opiniões e assim enriquecer o que foi escrito. Muito obrigada pelo seu contributo. Vou rever o texto.

2:28 PM  

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