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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, December 18, 2007

“Os Mares do Sul” de Manuel Vásquez Montalbán (Caminho; Biblioteca Visão)


O detective privado Pepe Carballo tenta descobrir a autoria da morte de Stuart Pedrell, um industrial catalão. A acção situa-se na época que se segue à queda do regime franquista, na Barcelona dos anos 1970.

Pepe Carballo é contratado pela viúva de um empresário assassinado misteriosamente, Stuart Pedrell, a qual pretende fazer a reconstituição, passo a passo, do percurso de vida do falecido marido, durante o último ano de vida deste no que toca à sua vivência extra-familiar.

Pepe passa, então, a dedicar o seu tempo a reconstruir o quebra-cabeças que é a personalidade do empresário e a forma como esta se articula com aqueles que com ele contactaram de perto.

Descobre, então, que tem em mãos um caso que envolve um empresário muito pouco ortodoxo. Trata-se de um diletante, um idealista, sonhador, apreciador das artes e refinado gourmet, obcecado, simultaneamente, por paisagens exóticas: os Mares do Sul. As gentes das ilhas de Gauguin.

Resta-lhe seguir, então, o itinerário que o leva às ilhas imaginárias onde Pedrell pensa encontrar a paz e a evasão, longe da hipocrisia e da frivolidade do mundo dos negócios, bem como da hipocrisia do jet-set das revistas de papier couchet.
Em Os Mares do Sul, Montalbán, aponta o chocante contraste sócio-económico patente na sociedade catalã da altura, em que a Espanha se encontra em pleno arranque da fase do desenvolvimento industrial, que lhe permitirá atingir o nível de riqueza ostentado no início do século XXI.

As condições habitacionais nos bairros operários contrastam violentamente com, por exemplo, a extravagante residência do Marquês de Mund, o sócio-capitalista de Pedrell, uma personagem a fazer lembrar um dos líderes do movimento surrealista no campo das artes. O Marquês vive alheado da realidade, isolado num mundo de luxo exuberante, deixando a gestão e multiplicação do seu vasto património herdado, a cargo dos seus dois sócios.

Já a classe trabalhadora, descrita na obra, vive num bairro operário, em condições assaz degradadas, cujas horas de ócio quase não são suficientes para dormir o tempo necessário de forma a enfrentar a rotina do dia de trabalho.

Ao contrário de Isidro Planas, o terceiro dos sócios da empresa do falecido, obcecado pela manutenção da forma física – dietas espartanas, massagens, exercício físico de rigor quase militar e…

…clísteres!

A obsessão de Planas é descrita através do humor cínico de Montalbán – embora este seja, na realidade, um falso cínico, para aqueles que sabem ler a sua prosa nas entrelinhas – o qual acaba por desvirtuar completamente a aparência viril do empresário de físico juliano.

Quanto ao protagonista, o detective Pepe Carballo, estamos perante um hedonista que, apesar da sua evidente afinidade com a ideologia marxista, é tão amante dos prazeres da vida como Pedrell.

Excepto pela forma – situada algures entre o cinismo e o cepticismo –, com que olha para as mulheres em geral – excepto em relação a Mima, a viúva de Pedrell, a qual vê como uma sedutora dama-de-ferro -, e a jovem operária que foi a última conquista romântica do empresário assassinado.

A primeira, é a mulher que paga os seus serviços de detective, uma mulher autónoma, eficiente, que “dá as cartas”. Que não está, portanto, habituada a deixar o crédito por mãos alheias. A segunda intriga-o pelo desprendimento – não é minimamente possessiva ou controladora – e, simultaneamente, pela capacidade de entrega e confiança que deposita em alguém de quem não tem quaisquer referências, como é o caso de Pedrell.E também pela capacidade que demonstra em acreditar num ideal que lhe permita – a ela e à família – resgatá-la da miséria.

Charo e Jessica são tratadas com a condescendência desdenhosa que um intelectual algo chauvinista dedica às mulheres em geral, que vê como belas e ocas.

Em Charo, Carballo vê-se a braços com a luta diária contra a excessiva possessividade e tendência para o melodrama da prostituta não assumida.

Em Jessica, rica e mimada filha de Pedrell, Carballo observa, por vezes com algum aborrecimento, a falta de orientação e a puerilidade da jovem que, sem ser desprovida de inteligência, não consegue encontrar um rumo para direccionar a própria vida. Ou a manobrar o barco que a leve rumo aos Mares do Sul. Ao paraíso idealizado pelo pai, pelo qual sente uma adoração em tudo semelhante à de Electra por Agamémnon.

A linguagem escatológica e o uso frequente do vernáculo, acentuam o cinismo aparente de Carballo. Esta característica de estilo é típica de Montalbán, encontrando-se patente em obras posteriores, embora não de forma tão vincada como, por exemplo, no romance histórico Ou César ou nada, onde entram personagens como a família Bórgia ou a rainha Joana, a Louca, filha dos Reis Católicos.

Mas nesta série policial protagonizada pelo detective catalão, premiada com o Prémio Planeta 1979, Montalbán serve-se da sua verve de características viperinas como arma de ataque, face ao entronizar do capitalismo desenfreado e da sociedade consumista, ao transformar um romance policial em romance de intervenção.


Cláudia de Sousa Dias

Friday, December 07, 2007

“O Coração das Trevas” de Joseph Conrad (Biblioteca Visão)


Joseph Conrad nasce em Berdichev, na Ucrânia, em 1850. O pai, de origem polaca, foi destacado para a Ucrânia devido à sua actividade política.
Conrad torna-se órfão aos onze anos, altura em que fica sob a tutela de um tio. Em 1874, parte para Marselha onde se alista na Marinha. A sua segunda língua torna-se o francês, mas começa a aprender o inglês aos vinte anos.
Quatro anos após a obtenção do Master’s Certificate e da nacionalidade britânica, abandona a Marinha e decide dedicar-se inteiramente à escrita.

Muitos dos seus romances são inspirados nas suas viagens ao Oriente e aos Mares do Sul. Casa-se na altura da publicação do seu segundo romance,
Um Vagabundo nas Ilhas.

Nos seus livros é frequente a crítica ao colonialismo por parte dos países europeus industrializados, não sem deixar de ostentar um certo cepticismo, relativamente ao uso dos ideais mais elevados utilizados como propaganda política ou como máscara para dissimular interesses económicos. Ideais que acabam por, desta forma, esconder a semente da corrupção, na opinião do Autor.

Conrad vem a falecer em Kent, em 1924.

Marlow, o protagonista de O Coração das Trevas é um marinheiro com um talento invulgar para contar histórias e cativar audiências, devido à magia que consegue colocar nas suas palavras. Sobretudo quando as histórias incidem nos relatos das suas viagens e aventuras em terras distantes.

O público é constituído por um grupo de marinheiros que aguarda no cais do porto londrino a mudança da maré que lhes permita embarcar no navio da marinha mercante britânica.

O início da narrativa começa com a descrição da paisagem brumosa do amanhecer em Londres, junto ao cais, o que coincide com o tom, entre o drama e o mistério, com que Marlow pinta o seu discurso.

As brumas vão-se dissipando, progressivamente, à medida que o marinheiro prossegue a sua narrativa, desvendando o mistério, ao mesmo tempo que a paisagem vai, gradualmente, surgindo com as suas cores reais.

A imponência do cenário domina a atenção do leitor, o qual se sente esmagado, pela forma como as linhas agressivas do relevo cortam a linha do horizonte e pela contemplação daquilo que, na paisagem, se conserva imutável ao longo dos séculos – desde o tempo dos invasores romanos, altura em que as ilhas britânicas sofrem a agressão do povo vindo do mediterrâneo com intenções expansionistas.

Para enganar o tédio da espera, Marlow pede um cigarro e, ao entabular conversa com os colegas, evoca a paisagem africana., recordando aquela outra bruma, húmida, diferente da londrina, infernal, que se levanta após o amanhecer na selva e faz evaporar o orvalho gelado que cai durante a noite…

Marlow consegue seduzir os ouvintes ao fazê-los visualizar o mistério da selva e dos seus abismos insondáveis. No seu relato, existe um personagem ao qual ninguém parece ficar indiferente: Kurz, o comerciante – ou traficante –, de marfim.

Kurz é, na realidade um mercenário, embora ao serviço dos interesses do comércio ultramarino britânico. Trata-se de uma ave rapace, tal como as antigas águias romanas, cuja ganância parece não ter limites. No entanto, todos os seres humanos com quem contacta, a caminho do coração das trevas verdes da selva, parecem sentir uma inexplicável veneração por Kurz, o homem que sobrevive a todas as febres e que consegue arrecadar a maior quantidade de marfim para os cofres do Império Britânico. Kurz é o melhor, o mais inteligente, o mais saudável, o mais bem-parecido, o mais….convincente.

Marlow, após uma viagem recheada de aventuras, que inclui a travessia de um rio traiçoeiro de onde os imprevistos surgem de todos os lados – bancos de areia, hipopótamos, crocodilos, canibais, ataque de setas envenenadas por parte das gentes locais que não vêem com bons olhos os invasores, ou simplesmente de bandos de traficantes rivais –, está impaciente de curiosidade em relação a Kurz. Acaba por vir a conhecê-lo um pouco antes destes morrer de febre, tal como o mais comum dos mortais. Uma morte que nada tem de épico nem de heróico.

Para Marlow, Kurz é realmente um homem que tem o poder de fascinar e cujas palavras hipnotizam, da mesma forma que os clássicos condottieri exibem um poder de persuasão capaz de movimentar as massas humanas em bloco. O chefe do posto de comércio de marfim faz lembrar Júlio César na altura em que apresenta ao senado romano a proposta de uma campanha na Gália, com o aparente propósito de pacificar a região, garantindo a paz na Península Itálica e, ao mesmo tempo, civilizar as gentes locais. Na realidade, o verdadeiro objectivo é o de anexar mais uma província ao seu território e dela extrair as riquezas e sob a forma de impostos, aumentando um pecúlio que lhe permitirá financiar a sua expedição ao Oriente e a candidatura a um segundo consulado – o primeiro passo para se tornar dictator.

Os objectivos de Kurz são um pouco semelhantes: ao apresentar um discurso pseudo altruísta, ele pretende na realidade chefiar um império comercial, para se sentir à altura de pedir a noiva em casamento.

As suas palavras estão impregnadas da demagogia usada pelos grandes hipócritas da história, cujo carisma mobiliza multidões. Esta lealdade cega é demonstrada, sobretudo, pelo ingénuo funcionário que acompanha Marlow durante parte da travessia do rio. E também pela cega devoção da noiva de Kurz – uma lady, à semelhança da frágil e, simultaneamente, tenaz Emily Gould, esposa de Charles em Nostromo.

“…respondi com qualquer coisa no coração que parecia um desespero e, de cabeça baixa, perante a fé que existia nela perante uma grande ilusão salvadora que cintilava como um sobrenatural clarão nas trevas…” – trata-se da identificação da jovem com a imagem de uma Eva genesíaca, presa a uma mentira, à ilusão de uma falsa luz – (…nas gloriosas trevas a que eu não consegui furtá-la, nem a mim próprio furtar-me (a humildade de se reconhecer como incapaz de deter em si mesmo o conhecimento absoluto).


O espírito crítico de Marlow está patente na altura em que se submete aos exames médicos necessários antes de embarcar pela primeira vez, encarando os testes e as qualidades – baseadas unicamente na resistência física – necessárias à obtenção de um posto na Marinha, com um certo desdém. Uma subtil contestação à frieza, algo cartesiana, da ideologia dominante na época – o darwinismo social, baseado na premissa da sobrevivência dos mais aptos e de que a sociedade funciona como um organismo vivo.
A mesma subtileza crítica está presente nas entrelinhas quando se refere à missão evangelizadora da colonização, sobretudo na cena com a funcionária pública que faz tricot enquanto espera pelos utentes.

A oposição entre o dogmatismo das convicções de Kurz e o espírito crítico de Marlow, sempre marcado pela dúvida, manifesta-se sobretudo nas últimas páginas. Uma das personagens secundárias chega mesmo a afirmar que “se Kurz tivesse sobrevivido, poderia ter pertencido a um partido extremista”.

Já Marlow mantém-se naquilo que ele próprio define como “zona cinzenta”, entre o preto e o branco, descrente de verdades absolutas e avesso a toda e qualquer forma de extremismo. Marlow adopta uma postura que muito tem a ver com os ideais de Confúcio, ao mesmo tempo que ostenta a serenidade de hierática de um Buda ao comunicar-se com os outros. Mais uma vez, é notória a influência do contacto com as civilizações orientais.

Sem deixar de admirar Kurz, pela paixão com que se entrega às suas convicções no que toca à superioridade dos valores inerentes à civilização britânica e aos seus objectivos materialistas, Marlow caminha pelo mundo com a frieza, a distância e a atitude avaliadora de um Mago Cinzento do tempo dos druidas. A sua omnipresente solidão sobressai como uma ferida aberta pelo bisturi da lucidez, e amplamente alargada por uma experiência de vida muito mais vasta em relação à maioria dos humanos, ocupados «com as suas questões quotidianas e aprisionados numa rotina imutável.

Na ignorância.

O Estilo e a Linguagem de Conrad

O que mais se destaca na escrita de Conrad e que dá à sua prosa a nota de sedução que permite ao leitor embrenhar-se na sua escrita é, em primeiro lugar, a adjectivação, que faz com que o leitor se sinta imediatamente transportado para o local onde decorre a cena.

Ao lermos um romance de Conrad, ficamos com a sensação de estarmos sentados diante de um écran de cinema cuja paisagem, planos, personagens e cenas se desenrolarem diante dos nossos olhos.

Em segundo lugar, a profusão de animismos e personificações, patentes sobretudo a partir do momento em que o leitor entra, juntamente com o protagonista, a bordo da embarcação pertencente à marinha mercante britânica, no coração da selva, subindo o rio, faz com que se sinta como se a floresta o possa engolir a qualquer momento, intensificando gradualmente a sensação de perigo, como se a selva tivesse uma alma consciente semelhante à humana.

A floresta reage como um ser humano ao sentir-se invadida, violada, tratando os exploradores com a hostilidade de um adversário que tenta expulsar um inimigo do seu território. Conrad utiliza posteriormente a imagem de uma rainha africana para dar uma forma física a essa mesma alma da floresta.

O Coração das Trevas é uma narrativa de extraordinária beleza que obriga o leitor a mergulhar naquilo que de mais obscuro existe na natureza humana: a vaidade soberba, a ambição desmedida, alicerçada em falsos valores ou, simplesmente, uma mentira convincente.
E a pensar se, de facto, os fins, na realidade, justificam os meios.
Afinal, numa sociedade cujo pilar é a sobrevivência dos mais fortes, dos que melhor se adaptam, ou dos mais espertos, haverá lugar para a justiça?

Ou para a inteligência construtiva?

E para a solidariedade?


Cláudia de Sousa Dias