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Thursday, November 22, 2007

“Filomeno, para meu pesar” de Gonzalo Torrente Ballester (Dom Quixote)


Filomeno Ademar de Alemcastre Freixomil é um jovem oriundo de uma família aristocrática pelo lado materno, com raízes galaico-portuguesas. Aos trinta e tantos anos, decide escrever as suas memórias que giram à volta da evolução dos próprios afectos e convicções bem como da luta pelo direito à liberdade de expressão, devidamente enquadrados num contexto histórico que tem como pano de fundo dois regimes totalitários. E também e da libertação progressiva do estigma que lhe confere o nome Filomeno – o qual abomina –, assim como do complexo de inferioridade desenvolvido face à sonoridade que associa ao seu nome: Filomeno, para seu pesar.

O nome Filomeno é-lhe imposto pelo pai, em homenagem ao avô, mas acaba por se tornar um fardo para o protagonista e narrador do romance impedindo-o de gozar da afectividade associada a um “diminutivo decente”, isto é que não soe, do seu ponto de vista, ridículo ou efeminado. O nome desagrada também à avó aristocrática, dona d e um “pequeno paço minhoto” e do solar de Villavieja del Oro, na Galiza. Ademar de Alemcastre soa-lhe muito mais romântico e literário, lembrando-lhe um antepassado seu, um sedutor galã que arrancava suspiros – e não só – a muitas damas lisboetas do século XIX, as quais, já no período da
Belle Époque, recordam com nostalgia o galã aparentado com os Távoras.

A trama principal de Filomeno, para meu pesar, isto é, a infância e a juventude de Filomeno, ou Ademar, decorre na primeira metade do século XX, mais propriamente, no interregno das duas grandes guerras e, sobretudo, durante a ditadura franquista em paralelo com o período do governo do Estado Novo em Portugal, altura em que Filomeno sai do país para trabalhar, primeiro, como empregado bancário em Londres e, depois, em Paris, como correspondente de guerra.

Amores, desamores, amizade e paternalismo

A infância de Filomeno é marcada por alguns acontecimentos dramáticos. A morte da mãe, que não chega a conhecer, a relação problemática com o pai – profundamente cartesiano –, incapaz de demonstrar a menor sombra de afecto por um filho a quem, por ser diferente de si próprio, só consegue falar em tom de crítica ou de azedume, e ao qual insiste em chamar Filomeno – o nome detestado.

Ao pai, preocupa-lhe aquela extrema sensibilidade, a propensão para o sonho, a queda para a poesia e para a literatura por parte do filho, ferozmente protegido pela sogra. Este afecto protector, camuflado de formalismo, por parte da avó - a quem Ademar (é assim que ela o chama e como o chamam aqueles que o amam na infância e adolescência) respeita e admira – teria transformado o jovem numa criança apagada e, provavelmente, sem auto-estima, se não fosse Belinha, a jovem ama de Ademar, de origem portuguesa, a quem dedica a primeira parte das suas memórias. O primeiro grande amor de Filomeno é a jovem camponesa, de seios maternais e com sotaque do Minho. É ela o poço de afectividade para Ademar, enquanto criança – Belinha e a avó recusam-se a chamar-lhe Filomeno partilhando, dessa forma, a mesma relação conflituosa, baseada num desprezo educado, pelo Sr. Freijomil. Por outro lado, Ademar desenvolve, em relação a Belinha, um afecto edipiano, um amor absoluto e trágico que deixará no jovem a marca indelével que irá caracterizar a sua forma de amar e de se relacionar com as mulheres, ao longo de toda a sua vida.

A relação maternal de Belinha com Filomeno Ademar adquire laivos de erotismo. Trata-se, contudo, de um erotismo maternal, da mulher que dá o seio, como a loba que alimenta os órfãos, Rómulo e Remo.

Precisamente na altura em que o jovem Ademar se começa a aproximar da pré-adolescência, a relação dos dois é bruscamente interrompida, criando-lhe um hiato entre esta afectividade primária e aquela que é característica dos amores adultos.

O grande amor, o mais completo, Filomeno Ademar conhecerá, anos mais tarde, em Londres, já terminados os estudos, ao trabalhar no banco onde a avó tem os seus investimentos. É lá que conhece Úrsula, oriunda de uma família de banqueiros judeus, a qual contribui decisivamente para o desenvolvimento dos seus conhecimentos sobre a alta finança, a política e a economia internacionais.

Profundamente bela, distinta, além de inteligentíssima, a jovem alemã oculta, por detrás de uma aparente serenidade e equilíbrio, uma ferida profunda, resultado do culto da eugenia, cada vez mais disseminado nos círculos intelectuais e, sobretudo, médicos na Alemanha do início do século XX…

É através do contacto com Úrsula que Filomeno se apercebe das repercussões da ideologia nazi e dos regimes totalitários na vida do cidadão comum. E é, também, pelo contacto com a jovem que Filomeno se apercebe que pode ser amado apesar do seu nome. Mais: que Filomeno é um nome digno de ser amado. Até porque contém esse sentimento, na sua raiz etimológica.

Mais tarde, em Paris, ao trabalhar como correspondente de guerra para um jornal Lisboeta, Filomeno conhece Clélia, uma personagem bizarra, misteriosa, surgida do nada e desaparecida de forma tão abrupta como entrou na sua vida. A paixão por Clélia nasce de um impulso de solidariedade, numa situação extrema, fruto da conjuntura de guerra num país ocupado e, também, da curiosidade que o impele a decifrar a personalidade de uma mulher enigmática, cuja conduta é, para si, um verdadeiro quebra-cabeças. A nostalgia causada pela partida da jovem, apesar de não lhe causar uma ferida tão profunda como a de Belinha ou Úrsula – patente até na dimensão dos retratos de ambas ou do tempo que dedica a cada uma na narrativa – transforma-se em mais uma razão para não se tornar simpatizante do nazismo. Ou de qualquer regime totalitário. O que provoca algumas dificuldades a Ademar enquanto cronista em Paris, nas suas relações com a direcção do jornal e, nomeadamente, com os mecanismos da Censura, a qual tenta encontrar, nas entrelinhas, das suas crónicas a mais leve marca de uma ideologia simpatizante com o regime estalinista que confunde com a simples crítica à política e ao sistema social impostos pelo Führer

Ballester dá-nos, através do olhar de Filomeno, a possibilidade de compararmos as relações das pessoas comuns em tempo de guerra, em duas cidades cujos cidadãos encontram formas de expressar o medo, o amor, a solidariedade, a compaixão, a estratégia de sobrevivência e a reacção ao invasor, de forma tão radicalmente diferente como a Paris e Londres.
Anos mais tarde, já de volta ao paço minhoto, Ademar tenta recuperar das perdas emocionais sofridas pela guerra – Úrsula e Clélia.

É então que conhece Maria de Fátima.
Esta é uma jovem oriunda do Brasil, que alia a extrema beleza, herdada da mãe, à sensualidade dos trópicos, onde os padrões de conduta e as normas sociais são mais flexíveis do que numa aldeia minhota, onde o controlo social é muito mais apertado.

Maria de Fátima provém de uma família rica. Contudo, as relações entre os seus membros são pautadas por uma extrema frieza, onde todos se comportam como super potências em plena guerra-fria. Uma guerra de palavras, disparadas como mísseis, e de frases carregadas de veneno nas entrelinhas.

Em casa de Maria de Fátima, existem três mulheres belíssimas. Regina, a mãe, Maria de Fátima e Paulinha, a criada. Esta última, desfruta de uma familiaridade com as patroas que não deixa de surpreender e, de certa forma, chocar, Filomeno.
Este sente-se quase como Páris, tendo que atribuir a maçã de ouro à mais bela e talentosa das três deusas.

A vencedora é Paulinha. De todas, só ela poderia ser equiparada a Afrodite. Além de bela, é a única a exprimir-se de forma a manter alguma harmonia em casa. Maria de Fátima seria a encarnação de Athena, principalmente pelo seu comportamento táctico e pela frieza absoluta da sua lógica. Regina seria, obviamente Hera, pela forma como exprime o seu poder quer sexual, quer como rainha da casa. Todas as suas atitudes são típicas de uma imperatriz despótica.

As três ficam imediatamente fascinadas com Ademar e com a elegância aristocrática do paço minhoto.

Mas Ademar não cai na armadilha.

Graças à recordação deixada por Úrsula e Clélia, que lhe permitem comparar e aumentar a sua capacidade de discriminação e discernimento.
Sobretudo porque, na personalidade de Maria de Fátima, são mais do que evidentes as consequências de uma infância sem afecto e, principalmente, na qual se sente, nitidamente, a falta da transmissão directa dos valores fundamentais pelas pessoas mais próximas. Apesar de exibir um fortíssimo magnetismo sexual, são a frieza e a secura emocionais, as características que mais se destacam na sua personalidade. O próprio Filomeno intui no olhar da jovem, de molde a gelar o desejo nas veias, o olhar da própria Medusa.

A solidão e a vida de celibatário do jovem fidalgo intelectual, aliados ao seu carácter introspectivo, permitem-lhe desenvolver um lento, embora sólido, processo de amadurecimento da própria consciência dos seus próprios desejos. A amizade de Flora – a prostituta amiga e ex-amante do próprio pai – é uma das peças fundamentais que acaba por ajudá-lo nesse sentido, ajudando-o a sanar velhas feridas. Para além disso, Flora acaba por se tornar uma espécie de fada-madrinha, protegendo Filomeno da perseguição do regime. A relação dos dois acaba por se tornar uma amizade sincera baseada na entreajuda mútua.

A ascensão de Franco ao poder desencadeia uma autêntica “caça às bruxas” no que respeita à perseguição dos opositores do regime, ainda durante o período de adolescência de Filomeno.

A situação em Madrid, na altura em frequenta o Ensino Superior, torna-se perigosa para um livre-pensador como Filomeno. Este não se sente propriamente bem regimes do género de ditadura militar. Sobretudo após o pai, o senador Freijomil, ter sido saneado, como pertencente ao regime anterior.

Durante a sua estadia em Madrid, Filomeno contacta com algumas figuras-chave as quais têm particular relevância no desenvolvimento e expressão da forma de se relacionar e comunicar com os outros e na consolidação da sua personalidade.

O primeiro foi o señor Praxedes, director do hotel onde se hospedava e que assume o papel de tutor do jovem, encarregue pelo pai de o proteger. O señor Praxedes gere as economias de Filomeno, aconselha-o nos gastos e, ao mesmo, tempo, deixa no ar algumas “dicas” no sentido de evitar dissabores na sua relação com os colegas e, principalmente, com as mulheres.

Praxedes é um homem de elevado senso prático, mundano e possuidor de uma extraordinária lucidez e perspicácia. Chega, inclusiva, a usar do poder e influência de que dispõe para tirar Filomeno de algumas situações difíceis, devido à sua ingenuidade.
É através de Praxedes que Filomeno aprende a melhor forma de lidar com o detestável Sotero, amigo invejoso e pedante, cuja necessidade de humilhar o colega, idealista, sonhador e com pouca auto-estima, atirando-lhe à cara o facto de o seu nascimento privilegiado e modos aristocráticos lhe retirarem o valor de todo e qualquer mérito ou conquista que venha a conquistar.
Também a amizade de Filomeno com Benito, amante da Literatura e apaixonado pela Poesia, permite-lhe comparar e, posteriormente, distinguir a verdadeira amizade do mero interesse.

Mais tarde, Filomeno terá a oportunidade de assistir à evolução de Benito para a situação de conformista frustrado, embora economicamente bem-sucedido – situação motivada pelas pressões familiares e no sentido de conservar o afecto de uma esposa interesseira e venal.

Filomeno e a maior parte dos seus amigos não gostam propriamente de ver o seu pensamento, gostos estéticos, filosóficos ou literários amputados pelo regime cujos mecanismos censores tentam indexar obras e autores – sobretudo se provenientes de países suspeitos como a França, a Rússia ou até a Inglaterra – como perigosas por opositoras ao estilo de governação de Franco.

Essa é, uma das razões que motivam a ida para Portugal após finalizar a Universidade, em Madrid.

A influência da família de Alemcastre em Portugal estende-se até à capital do País, factor que torna o ambiente um pouco mais favorável a Filomeno. Mesmo assim, este decide adoptar uma postura low-profile na manifestação dos seus ideais liberais, sem conseguir, no entanto, deixar de ser conotado pela mentalidade cartesiana do funcionalismo público português e de alguns membros da direcção do jornal onde trabalha, como possuidor de “ideais de tendência esquerdista”.

Em Lisboa, as afinidades entre a ditadura do Estado Novo e o fascismo franquista, juntamente com a simpatia do Presidente da República pelo regime nazi, criam algumas dificuldades no desempenho do trabalho de jornalista/cronista de Filomeno.

Este tenta, a partir da capital francesa sitiada, executar a função de comentador e crítico relativamente a eventos culturais parisienses para o jornal português debruçando-se sobre as áreas do teatro, da música e, também, crítica literária. Mas, para além de tudo o que diz respeito à cultura propriamente dita, Filomeno é, também, um perito na elaboração de análises politicamente neutras relativamente a economia, finanças internacionais, fruto da sua experiência em Londres, durante os seus primeiros anos de jovem adulto, logo após a morte da avó. O que o torna um pouco suspeito para os simpatizantes portugueses do nazismo e para os colaboracionistas franceses.

Também quando se trata de comentar algo como uma simples peça de teatro, Filomeno é obrigado a escolher as palavras com o mesmo cuidado com que um gato caminha sobre um parapeito cheio de estilhaços de vidro, numa janela aberta de um décimo andar.

Após o final da guerra, Filomeno Ademar “saltita” entre o paço minhoto e o solar de Villavieja del Oro, a aldeiazinha galega onde passou a primeira infância e conheceu Sotero.
Lá, reencontra alguns conhecidos de outrora, alguns deles, os mesmos que formavam o grupo da tertúlia literária local, num pequeno café-concerto. Mais tarde, as sempiternas perseguições ideológicas pela polícia política fazem com que esses debates e discussões literárias se realizem clandestinamente no bordel de Flora.

O último capítulo é assaz divertido com o toque de ironia, tão típico de Ballester, a enfatizar a mesquinhez e a pobreza de espírito das forças de ordem bem como as estruturas paralelas que o apoiam, como é o caso da Igreja.

A amizade da prostituta Flora, ao abrigo da qual se realizam as conferências do bordel, como outrora em Portugal as Conferências do Casino pela Geração de ’70, constituem o baluarte de Filomeno, em Villavieja del Oro face à hipocrisia pseudo-intelectual local, liderada por Doña Eugénia, a bela e desejada viúva (pelos membros de todas as facções políticas), colaboradora directa com os organismos da Censura nas lides literárias. Sobretudo com o clero local, cuja audácia chega ao cúmulo de se introduzir nas casas particulares e indicar quais os livros a serem queimados. Este é um dos aspectos mais explorados nas últimas cem páginas do romance que culmina com o encerramento do bordel (tal como outrora em Portugal o encerramento das conferências do casino) e a morte da proxeneta Flora.
Uma das características mais presentes, ao longo de toda a narrativa, é a nítida admiração de Ballester autor por autores portugueses da referida Geração de ’70 como Eça de Queirós e Antero de Quental, aqui manifesta pelas preferências literárias de Filomeno.
A ácida troca de palavras entre Filomeno e Don Braulio, o pároco da aldeia, é magistral e marca definitivamente a posição ideológica da personagem ao defender, com a fleuma britânica – provavelmente adquirida durante a sua estadia em Londres durante o raid alemão sobre a cidade –, a conservação do património cultural da família e a integridade da sua biblioteca privada, que conta com volumes com vários séculos de existência. A atitude fria, calma e perfeitamente racional de Filomeno deixa o pároco Don Braulio sem palavras.

A hipocrisia e o falso moralismo locais são literalmente dissecadas pela acutilante pena de Ballester, à qual nada escapa. Nem a (falsa) virtude das aristocratas e burguesas empobrecidas que se escapam pela porta traseira da igreja e entram, discretamente, no bordel de Flora, onde arranjam o sustento para manterem as suas dignas famílias.

Neste capítulo, Ballester é o acérrimo defensor dos direitos e liberdades individuais assim como a não interferência, quer da Igreja quer do Estado, em assuntos privados, como por exemplo, o funeral de Flora.

A Linguagem e o teor a Narrativa

Gonzalo Torrente Ballester tem a particularidade que só um escritor de altíssimo nível consegue atingir: a demonstrar as suas convicções por via indirecta, isto é, sem recorrer a juízos de valor, quer no que respeita ao comportamento das personagens – como é o caso de Sotero, Regina ou Maria de Fátima – quer no que respeita às diferentes posições políticas de todos os intervenientes.
Quem toma posições e emite juízos são sempre as personagens, nunca o narrador, mesmo sendo participante.

Abstendo-se de desempenhar o papel de juiz, usando a máscara de Filomeno, Ballester empenha-se antes em realçar as consequências no foro íntimo de cada um face às atitudes dogmáticas e extremistas de quem se julga detentor da verdade quando se faz de uma crença ou de um paradigma, seja ele de ordem teológica, económica ou política, a tábua rasa ou o modelo universal de comportamento para todos os homens.

Profundamente individualista tal como o jovem Filomeno, Ballester expõe as falhas humanas através do comportamento dos sujeitos e da transcrição dos diálogos onde as palavras podem ter o impacto de um dardo ou a capacidade de restaurar o equilíbrio.

A pedra de toque na escrita de Ballester é sempre o equilíbrio, a procura do bom-senso e sobretudo a defesa da liberdade e da inviolabilidade do direito ao livre-pensamento.

Também a luta de Filomeno e o principal móbil da sua conduta é a preservação da própria identidade e o direito a fazer aquilo que mais gosta: escrever e zelar por aqueles a quem estima.

A avó Alemcastre, de quem Filomeno herda o paço minhoto, transmite-lhe, desde o berço, a noção da importância da própria independência. Ela própria era quem ditava o teor das relações da sua casa com o Bispo ao determinar qual seria a porta por onde o sacerdote deveria entrar e nunca o contrário. Também Filomeno se recusa a seguir as directivas de um guru ou de um guia espiritual, seja ele de natureza religiosa ou política. O princípio básico que norteia a sua conduta é sempre o do afecto e do respeito, muito kantiano, pela individualidade. Sua e do Outro.

Talvez por isso seja uma personagem que se consegue fazer respeitar e admirar até pelos próprios inimigos.

O livro Filomeno para meu pesar mereceu a distinção Prémio Planeta para o Autor, cuja obra se torna indispensável para os apreciadores da boa literatura.

Filomeno, para meu pesar ou a paixão da escrita como manifestação do poder criativo da mente humana.


Cláudia de Sousa Dias

Saturday, November 10, 2007

"Lolita" de Vladimir Nabokov (Biblioteca Visão, Teorema)


Vladimir Nabokov nasceu em 1899, em Sampetersburgo e, sendo oriundo de uma família aristocrática deixada na miséria pela Revolução bolchevique, acaba por optar, logo em 1919, por viver no Ocidente.

Forma-se em Cambridge, instala-se em Berlim, onde compõe os seus primeiros textos em russo traduzidos, posteriormente, para inglês, com o pseudónimo de Vladimir Sirin.

Em 1940, vai para os EUA leccionar literatura, naturalizando-se norte-americano em 1945.

Em 1960, instala-se em Montreux, onde vem a falecer em 1977.

Verdadeiro cidadão do mundo, de espírito errante, o Autor é responsável pela publicação de um dos romances mais polémicos do século XX –
Lolita –, onde a perfeição estética do discurso narrativo da personagem Humbert Humbert e do estilo literário do próprio Nabokov entram em conflito directo com um dos tabus mais universais: a sexualidade ou a proto-sexualidade da criança pré-adolescente.

Lolita tornou-se num clássico, exaustivamente analisado e discutido nos círculos psiquiátricos, como exemplo paradigmático de um caso clínico de parafilia.

Ao mergulharmos na trama de Lolita e na mente de Humbert – a personagem principal –, é-nos oferecida a possibilidade de analisar o ambiente ou situação familiar de uma criança em risco, exposta ao contacto com um estranho, por uma mãe muito pouco atenta, por um lado, e vítima do assédio de um maníaco sexual, pelo outro.

A beleza estética da prosa, colocada na pena de um sujeito que tem em comum com o Autor a eloquência, a cultura e a origem aristocrática, não consegue esconder a paixão doentiamente obsessiva de alguém que desenvolve uma fixação pelo corpo feminino impúbere, baseada na imagem idealizada e nas emoções cristalizadas de uma primeira paixão, ocorrida aos doze anos. A interrupção abrupta e definitiva do romance levou a que Humbert Humbert situasse a imagem do seu ideal de mulher numa figura do passado, onde o desfasamento entre o desenvolvimento físico do próprio corpo e a maturidade das relações emocionais fica seriamente comprometido, adquirido uma faceta patológica.

O prefácio do livro não é mais do que um prólogo aos apontamentos de Humbert, que constituem o romance propriamente dito. O referido prólogo é escrito por uma personagem exterior à trama: um professor/investigador da área da psicologia clínica, o qual tem como função dar a conhecer ao leitor o destino trágico de Humbert Humbert e a utilização dada aos seus escritos, referentes à paixão deste por Lolita.

O referido professor chama a atenção para um número estatístico preocupante, relativo à população norte-americana, da qual “pelo menos doze por cento dos varões norte-americanos gozam, anualmente, de uma maneira ou de outra, da experiência especial que Humbert Humbert descreve com tanto desespero”.

Já as páginas escritas pela mão de Humbert Humbert dão-nos a conhecer o dia-a-dia e, consequentemente, a forma de interacção de três tipos sociais que, segundo a opinião do narrador do “prefácio” à obra de Humbert, “nos advertem de tendências sociais potencialmente perigosas”, relativamente a acontecimentos que tiveram lugar na primeira metade do século XX: “a criança caprichosa, a mãe egoísta e o maníaco anelante”, o qual constrói a armadilha como a aranha constrói a teia para atrair, prender e, posteriormente devorar a sua presa.

Tudo começa na infância – aqui nota-se a influência do modelo teórico de desenvolvimento da sexualidade de Sigmund Freud (apesar de se mostrar contundentemente crítico ao modelo teórico daquele a quem chamam o pai da psicanálise, Nabokov não propõe, no entanto, nenhum paradigma alternativo à teoria do médico judeu de origem austríaca) – de Humbert, o qual, ao atravessar o limiar da puberdade, se apaixona pela primeira vez por uma menina da sua idade para, pouco depois, sofrer o trauma do seu afastamento e morte. A perda definitiva e absoluta leva a um grau de inconformismo que permite ao leitor aperceber-se da sua incapacidade em lidar com a frustração (de Humbert) que o leva, egoisticamente, a procurar Anabela em todas as meninas de doze anos que se lhe assemelhem.

Um aspecto do romance que ocupa o primeiro plano na narrativa, é a identificação, logo a partir das primeiras páginas, daquilo a que Humbert chama de “ninfita”, a imagem de menina-mulher que atrai o instinto predatório do “Lobo-Mau”, isto é, do pedófilo.
Trata-se de um ponto de vista pessoal, melhor dizendo, da sua defesa, pela exaltação das características pretensamente “demoníacas” da presa, que o predador classifica como “ feita para o sexo”.
Humbert baseia o seu ponto de vista acerca das meninas de doze anos, na sua opinião sexualmente desejáveis, como sendo o arquétipo de Lillth, a mulher-demónio, segundo a tradição judaica, a primeira mulher de Adão. Ao mesmo tempo, tenta apresentar-se como vítima da sedução despudorada das Lillith que existem pelo mundo.

Na realidade, aquilo que Humbert vê como uma pérfida ninfita é apenas a criança que imita o comportamento sedutor de uma mulher adulta (o que coincide com o modelo teórico do investigador Bandura, cujos estudos demonstraram ser o processo de modelagem construtor dos padrões de comportamento de crianças e jovens), consoante os estereótipos que retira da publicidade: cartazes, anúncios televisivos e também modelos de comportamento retirados da indústria cinematográfica. Comportamentos esses que são originados mais pela necessidade de imitação de algo que surge como um ideal para a criança do que por um impulso de natureza emocional.
O impacto no leitor torna-se brutal, quando toma consciência das verdadeiras formas de Lolita através de uma erotizada descrição de Humbert acerca do objecto do seu desejo, dando relevo ao peso e às medidas de uma criança de apenas 142 cm de altura e cuja robustez ainda se encontra longe de atingir os 40Kg. Isto faz com que a mais anoréctica das modelos das passerelles exceda os parâmetros de beleza para um sujeito com este tipo de preferências.

A imagem imitada da mulher fatal por Lolita – e por todas as Lolitas – serve, normalmente, de desculpa para o abusador, que desvaloriza a gravidade do próprio comportamento, ao colocar a culpa na criança. Neste caso, Humbert socorre-se, ainda, da História da Arte e da Literatura, ao mencionar a idade da Beatriz de Dante e da Laura de Petrarca para justificar a sua preferência.

Os capítulos iniciais de Lolita contêm não só a explicação para os acontecimentos posteriores, mas servem, também, para definir claramente as características do predador e da presa.

A Personalidade de Humbert

Humbert é, aparentemente, um sujeito normal, respeitado na sociedade. É admirado, sobretudo pelas mulheres, apesar de se mostrar completamente indiferente para com elas. E é, aparentemente, um celibatário convicto, o que lhe aumenta o encanto. E também um tudo-nada excessivamente introvertido. Praticamente um misantropo.

Mas quando analisamos a sua prosa, descobrimos ou, se calhar, confirmamos uma personalidade profundamente anti-social.
O seu discurso não revela a menor sombra de afecto, estima ou admiração por ser humano algum, salvo as características morfológicas, apenas e só, das crianças a quem apelida de ninfitas.

Em relação aos restantes seres humanos, a tónica dominante é o desprezo desdenhoso, em virtude da sua suposta superioridade física e intelectual.

Este desprezo é dirigido tanto a homens como a mulheres adultos.

A referência, por exemplo, à mãe de Lolita, uma mulher que se encontra no apogeu da sua sensualidade de mulher adulta, a fazer lembrar um pouco a irónica sedução de Lauren Bacall, são sempre coloridas por adjectivos de teor pejorativo como “a gorda Haze” ou “a gata velha”.

Já a tonalidade épica, trágico-heróica, de elevada carga poética das suas palavras ao referir-se ao corpo de Lolita, criam um forte contraste com o restante discurso – a única nota dissonante da seca homogeneidade de uma prosa onde impera o cinismo.

Ex: “…impuros e indiferentes olhos crepusculares – como a mais reles das sedutoras – pois é isso que as ninfitas imitam, enquanto nós gememos e morremos”.

A eloquência e a grandiosidade deste discurso têm como objectivo convencer um júri - constituído quase exclusivamente por mulheres –, de que Humbert é, ele próprio, a vítima impotente da sedução de uma criança marcada por uma espécie de perversidade, na sua óptica, inata, e por impulsos sexuais precoces. A função deste tipo de linguagem, nesta situação, é a de despertar a compaixão, apelando ao romantismo da bancada feminina do júri.

Estes apontamentos são uma reconstituição literária, feita por Humbert, já no cárcere, das suas memórias, reunidas num caderno diário, encontrado e destruído por Charlotte. Para além da forma patética e distintamente cobarde como tenta, de forma explícita, justificar o seu comportamento, podemos facilmente identificar a perspicácia e o calculismo das atitudes de Humbert nas entrelinhas. A sua astúcia vai, no entanto, sendo progressivamente toldada pelo medo crescente face à possibilidade de uma traição por parte do objecto amado.

A cobarde hipocrisia de Humbert está patente na contradição entre as palavras e o seu comportamento efectivo. Humbert define-se como “incapaz de atentar contra a inocência de uma criança”. No entanto, tem de recorrer ao uso abusivo de fármacos para possuir Lolita pela primeira vez: Humbert só não se torna um violador em série de várias “ninfitas” pelo medo de ser descoberto e punido.
Esse é o motivo principal pelo qual se aproxima de Charlotte, propondo-lhe casamento.

Trata-se da camuflagem perfeita que lhe permite, simultaneamente o acesso fácil ao verdadeiro objecto da sua lascívia.

Em relação à temática propriamente dita, o discurso de Humbert debruça-se sempre aos seus próprios desejos, gostos estéticos e impulsos. Nunca sobre os de Lolita. Na realidade, ele nunca se mostra preocupado com o que ela pensa ou sente. É um homem exclusivamente centrado em si mesmo.

Charlotte Haze

Mrs. Haze, a mãe de Lolita. É uma mulher de grande magnetismo sexual, mas não é uma mãe cuidadosa. Não só pelo facto de expor levianamente a filha ao contacto com um estranho, do qual não tem quaisquer referências, mas até na forma de cuidar do asseio da sua “Lo” e, sobretudo, pelo excesso de permissividade relativamente à educação, linguagem e forma de estar diante do desconhecido que hospeda em casa.

Não se pode dizer, propriamente, que a felina e sedutora Haze mereça a simpatia do leitor: fria, profundamente egocêntrica, Charlotte não é uma mãe carinhosa e parece estar em constante competição com a filha, à qual desvaloriza constantemente, referindo-se-lhe, não raro, de forma pejorativa, como “decididamente feiota” e “fedelha”.

A pequena escrava sexual

Depois da morte de Charlotte, a educação e instrução de “Lo” é totalmente negligenciada.
Humbert, matricula-a numa escola onde a directora se preocupa mais com o desenvolvimento dos “dotes de conversação” do que com o ensino de disciplinas como matemática, geografia ou história, para já não falar de filosofia ou literatura – “Mr.Humbird, não nos empenhamos muito em transformar as nossas alunas em ratos de biblioteca (…), aquilo que nos interessa é a adaptação da vida em grupo. Damos muita importância aos quatro D’s: Drama, Dança, Debate e Encontros (Dates)”.

A Humbert até lhe convém que a sua “Lo” não pense muito não vá ela tornar-se demasiado crítica…De facto, a Humbert preocupa-o exclusivamente em “educar” Lolita no sentido de a transformar numa espécie de odalisca, isto é, numa parceira sexual sem tabus, contudo passiva, permitindo-lhe realizar todas as suas fantasias eróticas.

Lolita apercebe-se do que se passa, mas durante muito tempo, prefere submeter-se por não vislumbrar nenhuma alternativa.

Predador Compulsivo

O olhar predatório de Humbert não é apenas dirigido à enteada. Este observa e avalia os corpos de todas as suas amigas – embora nem todas se lhe afigurem interessantes – com as quais só não toma uma atitude mais audaz pelos riscos em ser descoberto.

No capítulo 11, ele próprio se define como “uma dessas pálidas e inchadas aranhas que se costumam ver nos velhos jardins. Instalada no meio de uma teia luminosa e dando puxõezinhos a este ou àquele fio. A minha teia está estendida por toda a casa enquanto eu escuto na minha cadeira, na qual estou sentado como um manhoso feiticeiro”.

O círculo fecha-se no momento em que, indirectamente, causa a morte a Charlotte e se constitui como o único tutor de Lolita.

A partir de então, ela estará destinada a tornar-se a sua escrava sexual. Lolita vê em Humbert a única pessoa no mundo disposta a ajudá-la a não cair no deserto emocional de um reformatório ou de um orfanato. Por este motivo, prefere a prestação de favores sexuais ao padrasto, à ausência total de um sucedâneo de uma família. Um sentimento dominante que resulta de uma enorme falta de autoconfiança, motivada por uma infância sem afecto.

A opressão torna-se, no entanto, intolerável sobretudo com a entrada de Lolita na fase da adolescência propriamente dita. Ela acaba por tomar consciência que não consegue falar com ninguém, sem a autorização expressa do seu carcereiro. E vê, com desespero crescente, todo o seu desenvolvimento social seriamente comprometido…

Note-se que o leitor só se apercebe do sofrimento de Lolita por via indirecta, isto é ao prestar atenção nas suas atitudes externas, ou seja, no seu comportamento.

Libertação

Curiosamente, Humbert só cai sob a alçada da justiça ao causar a morte a um pedófilo rival, o qual tenta, segundo Lolita, seduzi-la. E ainda mais intrigante é o facto de o referido pedófilo preferir geralmente crianças do sexo masculino… Uma inteligente jogada de Lolita para se libertar do seu abusador ao acusar outro predador semelhante a ele?

A auto-defesa de Humbert, na verdade o cerne de todo o romance, revela tratar-se de um indivíduo que, apesar de dotado de inteligência acima da média, só consegue convencer quem não está treinado para ouvir as justificações de um violador que tenta atirar a culpa para a vítima. Este abusador acaba, neste caso, por desenvolver um complexo de Othello que lhe vem a ser fatal. Trata-se da porta de saída que possibilita a Lolita a fuga da sua prisão, ao explorar o ciúme de Humbert.

Uma história situada na primeira metade do século vinte, mas que se mantém mais actual do que nunca.


Cláudia de Sousa Dias