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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, September 26, 2006

“Notícia de um Sequestro” de Gabriel García Márquez (Dom Quixote)


A prosa objectiva de García Márquez cuja raiz ascende ao passado jornalístico deste Autor galardoado com o Prémio Nobel em 1982 é, desta vez, solicitada pela mediática jornalista colombiana Maruja Pachón, e seu marido, Alberto Villamizar, para adaptar o talento de Gabo como cronista ao relato da odisseia de dez pessoas que foram vítimas de sequestro. O plano foi meticulosamente construído pelo líder do cartel de Medellín: Pablo Escobar – um dos principais barões da droga daquele país.

O objectivo do poderoso traficante era impedir a extradição dos seus colaboradores para os Estados Unidos e, simultaneamente, colocar-se sob a protecção estatal , numa prisão de alta segurança, para se prevenir contra as possíveis represálias perpetradas por cartéis rivais.



Notícia de um Sequestro pretende ser a um relato fiel das horas de angústia dos sequestrados e dos esforços, nalguns casos desesperados e noutros mais conformistas, dos familiares, no sentido de libertar as vítimas.

Uma missão cuja eficácia só foi conseguida a oitenta por cento, em virtude do assassínio de Marina Montoya – à laia de retaliação pela morte de dois homens de confiança de Escobar – e de Diana Turbay, a Filha do ex-presidente Turbay, morta durante uma operação de resgate, destinada a prender o traficante, sendo a jovem atingida por uma bala perdida, durante o fogo cruzado.

Todos os sequestrados estavam directa ou indirectamente ligados aos meios de comunicação social, quer pela via profissional quer parental, ou com figuras da política de grande destaque.
Os reféns eram pessoas relativamente conhecidas dos media cujo sequestro foi detalhadamente planeado de forma a causar grande impacto na opinião pública.

Face a estas circunstâncias, os familiares das vítimas que trabalhavam em programas de televisão emitiam programas, sessões ou rubricas especiais no sentido de confortarem os prisioneiros fazendo-lhes chegar mensagens de apoio semi-codificadas.

O que sobressai no relato de García Márquez é que, a par da neutralidade que sai da pena do escritor e se mantém ao longo de toda a narrativa sem cair na tentação de emitir juízos de valor – onde Escobar aparece como uma personagem de Mario Puzzo –, é a pusilanimidade do Presidente César Gavíria, a ineficácia dos serviços secretos colombianos face à generalização do crime organizado. Os tentáculos das organizações criminosas ramificam-se abrangendo a maior parte da população de Medellín, onde grassa a escassez de emprego e se torna cada vez mais difícil de resistir à tentação de se colocar sob a protecção de uma rede de organização criminosa.


Em relação aos sequestrados, García Márquez consegue transmitir ao leitor – se bem que de forma um pouco atenuada por se tratar de um relato em segunda mão – a angústia resultante do nível de pressão psicológica a que são submetidos e que, mais do que a violência física, acaba por abalar a sua estabilidade emocional. Um terrorismo psicológico exercido com requinte e preciosismo a raiar o sadismo, manifesto em restrições impossíveis como, por exemplo a limitação do acesso à casa de banho, aos cuidados de higiene, privacidade e comunicação entre os reféns e mesmo a simples movimentação de braços e pernas.

Em relação à personalidade dos sequestradores, esta é variável, consoante o grupo de sequestrados que tinham a seu cargo.
O grupo que sofreu mais medidas de coacção foi precisamente, o de Maruja Pachón, onde também se encontrava Marina Montoya, sobretudo na primeira fase do sequestro e na altura do assassínio de Marina, altura em que mudaram os elementos que os vigiavam.

O medo e a tensão psicológica eram também uma constante entre os sequestradores, sempre em permanente estado de alerta com o receio paranóico e quase que esquizofrénico de serem descobertos. Nota-se uma relação de personalidade directa entre o terror pânico de a operação ser desmantelada e os maus tratos aos sequestrados.

Por outro lado a tensão atenua-se quando os primeiros sequestradores são substituídos, após o assassínio de Marina, chegando a estabelecer-se uma relação de quase amizade com as vítimas.

Entre estas, o pânico é ampliado sempre que é anunciada a libertação de um dos reféns, pelo facto de estes não terem forma de saber se se trata efectivamente de uma libertação ou da saída para o corredor da morte. Uma verdadeira roleta russa.

A dificuldade em resgatar as vítimas é ampliada pela constante mudança de residência das mesmas, distribuídas por vários locais, com o objectivo não só de confundir as autoridades, mas também de dificultar a detecção das vítimas e a organização de esforços concertados e simultâneos para a sua libertação.

Quanto aos familiares das vítimas, as atitudes variam praticamente de um extremo ao outro: desde a quase inércia do ex-presidente Turbay, que coloca o estado, o dever e a reputação do mecanismo legal que representa a Justiça, em primeiro lugar, relegando a segurança da filha para segundo plano; e Alberto Villamizar, marido de Maruja, que desenvolve todo um processo de negociação e mediação entre as autoridades estatais e os próprios traficantes, ou Doña Nydia, mãe de Diana, que chega a humilhar-se perante a família dos traficantes.

Um livro onde humanidade e desumanidade se misturam, onde o bem e o mal andam de mãos dadas para que o ideal de Justiça não seja mutilado, salvo algumas escoriações.

Uma vitória com gosto amargo pela perda de duas vidas inocentes.

De um realismo arrepiante.


Cláudia de Sousa Dias

Friday, September 15, 2006

“O velho que lia romances de amor” de Luís Sepúlveda (ASA)


O mais conhecido best-seller deste autor chileno Luis Sepúlveda, O velho que lia romances de amor, é dedicado a Chico Mendes, morto numa emboscada por defender a floresta e os direitos das tribos amazónicas.

A grande floresta amazónica, um dos locais do mundo onde sobrevivem espécies raríssimas de fauna e flora é o verdadeiro protagonista do romance, cuja mensagem é transmitida pelos olhos de António José Bolívar, o velho eremita que vive na floresta e que lê romances de amor. Esta personagem, aparentemente excêntrica, funde-se com a vida na floresta, vive em perfeita si
mbiose com os seus habitantes, humanos, animais e vegetais.

A história da vida de António José Bolívar, inspirada, ao que tudo indica, em Chico Mendes, tenta incutir os valores que preconizam o respeito pela natureza e pelas tribos índias, no coração da selva, através de um romance sobre “o desconhecido mundo verde” como meio de sensibilização da opinião pública.

Para António José Bolívar, a solidão na floresta é compensada pela companhia das novelas de amor, que lhe permitem resgatar o passado e mostrar-lhe as outras dimensões da paixão, estimulando a imaginação e ao mesmo tempo desencadear uma discussão literária no meio da selva pelos homens rudes – colonos e garimpeiros – a quem o velho lê as suas novelas de amor, para os distrair nas horas de tédio e solidão.

Personagens

Desde o médico dentista , anárquico convicto, com o sugestivo nome de Rubicundo Loachimín, cujos métodos primitivos de tratar dentes não conseguem afugentar-lhe a clientela por falta de alternativa, todas as personagens têm algo que nos parece exótico e excêntrico aos nossos olhos. Na realidade, numa aldeia como El Idilio as coisas não podiam passar-se de outra forma.

Por exemplo, o Doutor Loachimín, passa a vida a vituperar o governo e as instituições para distrair os doentes dos movimentos das suas terríveis pinças, insultando-os quando mostram falta de coragem para enfrentar as suas tenazes sem anestesia. El Idílio é uma terra de tal forma isolada que apenas uma pequeníssima e precária embarcação fluvial assegura o transporte de víveres, medicamentos e pessoas assim como a comunicação com o exterior. El Idílio é tão isolada como a Macondo de Gabriel Garcia Marquez.

O vilão do romance é o administrador da circunscrição, funcionário público venal, perito na arte da extorsão, gordo e sempre suado – característica que lhe valeu a alcunha de Babosa – prepotente com os fracos, untuoso e subserviente com os poderosos e endinheirados.

O romance trata, ainda, do conflito entre as tribos índias e o homem branco – o drama da aculturação. Dentre as tribos índias destacam-se duas castas diferentes: a dos jíbaros, semi-aculturados e dependentes do álcool, marginalizados pelos xuar; os xuar, o povo da floresta que mantém as suas tradições, isolado na selva.

Trama

Quando surge o cadáver de um estrangeiro – gringo - no mato, Babosa tenta incriminar os xuar que atrapalham as suas actividades pouco lícitas e prepotentes ligadas à extorsão e ao trafico ilegal de espécies exóticas. Por outro lado, ao representar o poder local não resiste a manipular as eleições usando um método ancestral: o suborno.

É, no entanto, desmentido pelo sábio da floresta, António José Bolívar – o velho que lê romances de amor. É detentor de um conhecimento profundo da fauna, da flora, dos hábitos e tradições das tribos locais, assim como do comportamento animal – um saber empírico adquirido ao longo de muitos anos de observação da vida na selva.
Bolívar aprende a conviver com os xuar, torna-se quase num deles e aprende os seus conhecimentos de medicina, rituais religiosos e de caça, a forma de sobreviver na floresta tropical e o amor entre os xuar, onde se verifica a ausência de sentimentos de posse ou ciúme. Além de tudo isso, o velho romântico, goza de uma liberdade e independência absolutas, sem delas ter propriamente consciência.

Os inimigos dos xuar e da floresta são, sobretudo, os colonos e os garimpeiros que perturbam, também a paz de Bolívar: “…os colonos devastavam a floresta construindo a obra-prima do homem civilizado: o deserto.”

O homem branco vê, em contrapartida, como inimigo os seres da floresta: a onça, a jibóia, ou a tribo dos endiabrados micos – pequenos macacos que vivem no alto das árvores. Muito observadores e curiosos, estes primatas atacam em massa os turistas de máquina fotográfica, despojando-os de todo o tipo de objectos que lhes chamem a atenção ou que lhes desperte a curiosidade.

O velho que lê romances de amor

António José Bolívar é um homem idoso, de idade indeterminada, que gosta de poupar a dentadura postiça para a não desgastar, colocando-a apenas para comer ou falar – tal como alguém com a vista cansada faz com os óculos que usa só para ler.

Os livros aparecem a José Bolívar como a vingança ou o bálsamo contra a opressão do meio – um “inferno verde que lhe arrebatara o amor e os sonhos”.

É graças aos livros que ele descobre a beleza da linguagem, o sucedâneo de um amor perdido de uma bela morena que, segundo a descrição do retrato, muito se assemelha a Frida Kahlo.

Ler era para o velho que passa quarenta anos da sua vida na floresta, a possibilidade de regressar ao mundo que abandonou, cristalizado num passado longínquo.
António José Bolívar é ajudado pela professora da escola local, que lhe recomenda as obras e lhe faz as encomendas em troca da ajuda nas tarefas domésticas e na construção de um herbário.
Bolívar demonstra uma curiosidade inicial pela geometria e um desprezo pelos compêndios de história por considerá-los repletos de pedantismo, mas a sua paixão é a literatura, sobretudo os livros que falam de amor.

A dada altura, lê tanto que começa a tornar-se crítico literário e a presidir a debates e tertúlias no meio da selva, junto dos garimpeiros e traficantes de espécies exóticas.

António José Bolívar consegue tal façanha por dedicar escassas horas do dia ao sono e à sobrevivência e o resto do tempo livre aos romances, à semelhança dos intelectuais que frequentam os cafés de Paris, como Sartre, ou um escritor metódico e profissional como Gabriel Garcia Marquez – apesar da sua escassíssima instrução, Bolívar é um autodidacta. Um dos mais divertidos episódios da obra é aquele em que se gera uma acalorada discussão face à dificuldade em imaginar Veneza como uma cidade construída sobre as águas, que quase acaba numa rixa.

O estilo

A prosa de Sepúlveda é descritiva e, ao mesmo tempo, tão sensorial que parece que entramos pela selva dentro, juntamente com as personagens, fazendo lembrar as descrições de Herman Melville em Taipi ou Kipling em O Livro da Selva. Sobretudo na cena do ataque dos micos, que lembra os macacos no templo na obra do célebre escritor britânico.
Em O velho que lia romances de amor o leitor quase que pode sentir, o calor húmido e opressivo da atmosfera das florestas das chuvas, cuja humidade se cola à pele, o desconforto dos pés a enterrarem-se na lama, a violência do caudal do aguaceiro na floresta tropical, o canto dos pássaros, os guinchos dos micos, o sabor exótico dos frutos da floresta.
Ou visualizar o andar elástico da dos felinos, ouvir o miar irado da onça…ou ainda, imaginar o voo cortante dos galos das rochas, debaixo do peso da cortina de chuva dos trópicos, a neve a repousar na borda do vulcão andino, o peso das nuvens grávidas de chuva…

O oposto do velho que lê romances ou novelas de amor é dado por Babosa que representa a boçalidade do homem branco que ao desconhecer totalmente o ambiente da floresta, comete toda a casta de imprudências e gaffes de maneira a fazer a floresta voltar-se contra si próprio revelando uma total incapacidade de adaptação.
A arrogância de Babosa impede-o de aceitar as recomendações de Bolívar. Este finge aceitar o desafio de Babosa indo sozinho atrás da onça assassina.

A precisão, a minúcia e o detalhe com que Bolívar estuda o comportamento do animal até ao movimento mais elementar descodificando-lhe as atenções é uma das cenas mais empolgantes da obra.

O final é de uma dilacerante beleza, onde não há vencedores nem vencidos no confronto entre o homem dito civilizado e a selva.

Um livro de denúncia e de protesto acerca de um homem que só nos romances de amor encontra o refúgio face à barbárie humana.

Único e irresistível.

Para ler de um só fôlego.

Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, September 05, 2006

Música e Silêncio” de Rose Tremain (ASA)


Após o audacioso e pouco ortodoxo Restauração, a ASA publica mais um romance histórico da Autora. Desta vez, o protagonista é o Rei Cristiano IV da Dinamarca: génio, criativo, tio do malogrado Charles I de Inglaterra e ...melómano.
Copenhaga, 1629. O Rei Cristiano IV governa o actual território dinamarquês acrescido da Noruega e da Islândia.

Casado com uma mulher frívola, que o trai com o seu inimigo, o Rei é humilhado pela derrota da última guerra religiosa, no contexto da Guerra dos Trinta Anos, entre católicos e protestantes envolvendo a Casa dos Habsburgos – em Espanha – e a Casa da Áustria. Com as finanças do país exangues, o rei Cristiano mergulha na depressão, agravada pela perda do amigo de infância, Bror Brorsen.

Além dos fantasmas da Saudade e da Solidão, é perseguido pela necessidade urgente e imperiosa de sanear a economia do país. Dentro dos projectos e reformas por ele iniciados, algumas medidas relativas contenção do esbanjamento irracional face à nobreza tornam-no assaz impopular entre os cortesãos.

Rose Tremain dá-nos a conhecer a vida de um Rei atormentado por uma corte de bajuladores, farto de hipocrisia e carente de verdadeiros pensadores e conselheiros racionais. Cristiano IV prossegue a sua busca pela perfeição expressa na exigência de produtos de qualidade, tornado-se quase que obsessivo na identificação quer dos defeitos de produtos de origem dinamarquesa, quer nas falhas dos serviços administrativos.
Idealiza uma série de projectos grandiosos – a edificação do castelo de Friedriksborg e de um observatório de astronomia - e reformas audazes podendo, em seu idealismo e criatividade, ser comparado com Ludwig II da Baviera, no século XIX.

A sua faceta criativa traduz-se, por exemplo, numa forma pouco ortodoxa de aplicação da justiça, preferindo administrá-la tendo em conta o aspecto repositivo em vez do punitivo, enquanto que o lado sonhador da sua personalidade reflecte-se no amor à investigação científica e às artes, sobretudo...à Música.

A música é para o Rei como que um lenitivo, sob a forma de catarse que, ao limpar a alma, facilita a introspecção e a comunicação com o divino, ou seja, a Perfeição, no entender do monarca. A principal finalidade do romance é precisamente a de mostrar a música como a terapia da Alma.

Paralelamente à trama que envolve personagens históricas, é desenvolvia uma história romântica entre duas personagens fictícias: Peter Claire, o alaudista inglês contratado pelo Rei, e a jovem Emília, aia de Kirsten, a consorte real – um dos poucos aspectos do romance que segue a fórmula clássica do conto de fadas depois de começar como um amor impossível, à laia de Romeu e Julieta.
Personagens
Peter é alguém cujo carisma e falta de premeditação na forma de agir conquistam a confiança daqueles que com ele convivem, sobretudo do Rei que o vê como um ser angélico e protector, um pouco à semelhança do que acontecia no passado com Bror.

Bror e Peter são classificados como seres de ouro quase que semi-divinos e a quem a divindade não consegue de deixar de reclamar para junto de si. Em termos mais racionalistas pode-se classificar estas duas personagens como seres demasiado íntegros para se defenderem da Perfídia e de facilmente despertarem o Ciúme ou Inveja.

De aparência mais discreta, mas igualmente naïf, Emília está numa situação muito semelhante pois é visada simultaneamente pelas duas grandes vilãs do romance: Kirsten e Magdalena.

Os Males da Alma

Exceptuando o par romântico constituído por Peter e Emília, quase todas as restantes personagens principais sofrem de uma determinada disfuncionalidade a nível psíquico.

Um dos aspectos mais aliciantes focados no romance, é precisamente, a forma como estes “males da alma” eram vistos pela população dinamarquesa do século XVII. Numa cultura em que a “loucura” era frequentemente conotada como possessão demoníaca, a Autora faz, de uma forma inteligente, o enquadramento dos diferentes mitos e superstições no quotidiano do povo dinamarquês logo no início do romance, ilustrando a forma como o sobrenatural constituía a explicação de todas as anomalias. Do corpo e da psique.
A Autora consegue criar um forte contraste com o diálogo entre Peter e Cristiano a propósito do mundo do racionalismo cartesiano versus o mundo das emoções. Nota-se uma inspiração na obra de António Damásio em O Erro de Descartes. A psicologia da gestalt também está presente nas entrelinhas, a propósito do saco de botões, onde se chega à conclusão que o valor do conjunto é superior à soma do valor de cada um dos elementos isolados que o compõem.

O rei Cristiano é, frequentemente, retratado em estado depressivo, passando por momentos esporádicos de ansiedade. Este encontra na Música um ansiolítico e no diálogo, primeiro com Peter e depois com Vibeke – a sucessora de Kirsten – a terapia e e o caminho para a cura.

Kirsten, a esposa, manifesta, por sua vez, sinais inequívocos de personalidade anti-social. Como se trata de uma patologia que tem a ver não propriamente com distúrbios de ansiedade mas antes com a construção do carácter e a forma positiva ou negativa de resolução/integração dos conflitos, a Música não a afecta. Porque não existe, para ela, nenhuma recordação positiva associada à Música. A Música, para que a amemos tem de estar, através da Memória, associada a algo que nos transmita prazer ou bem-estar. Para Kirsten a única fonte de prazer e bem-estar é o Sexo – o seu único deus.
Como Kirsten não possui sentido estético, a sua criatividade e imaginação não estão voltadas para as Artes nem para a aquisição do conhecimento, a não ser para a satisfaça dos seus interesses mais imediatos. Kirsten está permanentemente em guerra com o Mundo. Tudo o que afasta o pensamento dos seus jogos de estratégia para ficar em vantagem relativamente àqueles que estão à sua volta funciona como distrator, diminuindo o seu estado de alerta. É por esta razão que Kirsten não só não ama a Música como também a detesta.

A personalidade da consorte do rei é marcada pela impressionante frieza com que manipula a vida das pessoas como se se tratassem de meras peças de xadrez. Possui também uma extraordinária capacidade de transformar uma verdade em mentira e de vestir uma mentira com as roupagens da Verdade. Trata-se de uma patologia que manifesta um total desrespeito pelo Outro, visando a satisfação dos interesses individuais, camuflados muitas vezes debaixo de uma máscara de altruísmo.
Para isso recorre, frequentemente, a mecanismos de defesa do EGO como a racionalização, a sublimação e a projecção face às suas próprias atitudes.

Bror, o melhor amigo do Rei, sofre de dislexia, o que lhe causa sérias dificuldades de integração social.

Marcus, o irmão mais novo de Emília, padece de autismo, agravado pelos maus-tratos infligidos pelo pai e pela madrasta. Emília será a terapeuta do irmão ao utilizar um método tão ousado quanto pouco ortodoxo, exigindo-lhe grande dose de criatividade ao entrar no mundo dele, ajudando-o a construir, a partir daí, o seu vocabulário, ampliando-o trazendo-o de volta à realidade conjugando duas artes: a pintura e os sons/música da Natureza.

Destaca-se a beleza do capítulo intitulado O quarto dos insectos que ilustra o pequeno mundo fechado de uma criança que não consegue conviver com a dura realidade à sua volta.

A condessa O’Finley, sofre durante algum tempo de melancolia/depressão após o fim do seu relacionamento com Peter. Francesca liberta-se através da escrita, do trabalho e do aumento do convívio social.

Mas nem todas as situações evoluem favoravelmente. O Conde o’Finley afasta-se progressivamente da realidade, devido à perseguição de um sonho que não é o seu.

No caso específico do marido de Francesca, a Música não funciona como terapia. É, pelo contrário, um factor de agravamento do seu estado manifestando sinais inequívocos de esquizofrenia.

Já em relação à rainha-Mãe, Sofia, nota-se um progressivo estado de demência causado por uma doença degenerativa do sistema nervoso que a leva a manifestar comportamentos disfuncionais como a avareza.

O pai de Emília é uma personagem de índole simultaneamente passiva e egoísta que se deixa manipular pela perfídia da segunda esposa, também de personalidade anti-social Magdalena.

A Simbologia: Música e Silêncio

A música opõe-se ao silêncio, funcionando, no caso do Rei Cristiano e do conde O’Finley, como catalizador dos processos mentais.

Segundo uma das personagens principais, a Música “é a alma humana falando sem palavras”. Para Peter Claire – o músico terapeuta – esta permite exprimir “alguma coisa de mim próprio que, de outra forma, não teria voz”. O diálogo ocorrido entre ambos torna-se particularmente produtivo pois, é como se fosse uma conversa entre psicólogo e paciente ou entre conselheiro não oficial e discípulo real.

O Silêncio surge ainda como a face negativa da Música. Simboliza o vazio da alma. A impassibilidade. A indiferença. A alma mergulhada no caos. Nas trevas. A música surge quase sempre para as pessoas que lhe são sensíveis como um paliativo gerador de harmonia.

Para o estado de alma de O’Finley um paliativo não é suficiente, devido a um estado de progressiva alienação da realidade.

Mas ao longo da obra, predomina a ideia de que a ausência de música significa a Solidão. No casamento de Charlotte, a irmã de Peter, acontece algo de paradoxal: a magia da música cigana consegue calar os convidados que, refugiando-se dentro de si mesmos, se aproximam pelo fascínio que os gemidos dos violinos ciganos exercem. É o apelo à emoção, à liberdade à tentação de pertencer a si mesmo que hipnotiza os convidados, fazendo parar o ruído da festa.

Podemos mencionar, ainda, a presença de outros elementos simbólicos na obra tais como o Inverno, o Gelo e as cinzas, que estão conotados com o arrefecimento da paixão. De Peter por Francesca O’Finley, Cristiano por Kirsten.

Bror é como que o anjo da guarda do próprio Rei, o símbolo da liberdade, da beleza da juventude que após o seu desaparecimento este pensa ter reencontrado em Peter.

O mês de Abril em Copenhaga está associado ao perfume dos lilases que, por sua vez, está conotado com a felicidade…Tal como o aroma das tílias aparece ligado aos amores fugazes.

O EstiloO estilo varia consoante o tipo de narrador. E há três narradores em Música e Silêncio.

Há, em primeiro lugar, o narrador não participante e omnisciente. Onde predomina o estilo narrativo. Cada cena é decomposta nos seus mais ínfimos elementos, com os verbos quase sempre no pretérito perfeito, relatando os mais ínfimos movimentos ou mudanças de emoções das personagens através de gestos ou expressões faciais. Trata-se de um discurso frio, objectivo e dessecante. A única desvantagem reside no facto de que o leitor ouve mais a voz do narrador ao invés de visualizar a cena, o que aconteceria se a Autora optasse por um estilo mais descritivo. Uma desvantagem que desaparece quando a narradora é Kirsten o a Condessa O’Finley.

A primeira ao escrever os seus Cadernos Íntimos é como se estivesse em perpétuo diálogo, ou melhor, em monólogo directo com o leitor exibindo a sua personalidade enérgica, cínica e marcadamente lasciva. O estilo que sai da pena de Kirsten é marcadamente descritivo, fazendo simultaneamente juízos de valor de acordo com a sua personalidade. Aqui estamos no plano exclusivamente individual, permitindo-nos viajar pela mente tortuosa de uma mulher cujo comportamento, politicamente incorrecto, faz lembrar o das Ménades durante as festas dionisíacas. A construção dos seus argumentos mostra uma pessoa que, além de egocêntrica, é extremamente inculta. Porque não é capaz de utilizar a simples aquisição de conhecimento em proveito dos outros. Há sempre uma total falta de generosidade nos seus propósitos, mesmo quando estes estão cobertos com a máscara do altruísmo.
Orientada pelo princípio do prazer, Kirsten é o arquétipo negativo de uma Vénus/Afrodite, materializada numa fêmea humana que poderia ser a companheira do Marquês de Sade. Ela torna-se a perfeita anti-heroína, em contraste com a ingenuidade de Emília, uma autêntica Julieta Shakespeariana, esquiva como Arthemis.

A terceira narradora, a condessa O’OFinley, dá-nos a conhecer a sua história através dos seus diários intitulados de La Dolorosa cuja escrita põe a nu a sua sensibilidade, romantismo e nostalgia. Os diários da condessa são dotados de uma prosa apaixonada, e arrebatadora de uma mulher madura no apogeu do seu magnetismo pessoal e poder de sedução. As suas páginas são aquelas que mais estão impregnadas de lirismo em toda a obra. Através do olhar de outras personagens, como Peter ou mesmo o próprio Rei Cristiano, apercebemo-nos que é uma mulher dotada de uma beleza serena e, ao mesmo tempo, majestosa. Francesca é o arquétipo positivo de Afrodite, uma mulher que seduz pelo charme e sofisticação, pelo saber estar e pela expressão enigmática, giocondica.

Música e Silêncio é uma obra de grande interesse, apesar de a Autora não conseguir evitar o lugar-comum no destino que reserva a Francesca O’Finley.

Sobressai a beleza da música na pena de Rose Tremain.
Só para as almas sensíveis. Que entendem a linguagem dos sons.
Que exprime o que não pode ser traduzido por palavras.


Cláudia de Sousa Dias